Aguardava tua saída do colégio, ruminando pequenos aborrecimentos. Acabara de ter uma discussão feia com o porteiro do teu colégio. Não gosto de sentir que perdi o controle emocional. Te esperando, ainda com raiva de minha atitude e da dele, fui espiar teu sanduíche que compro nos dias que tem o Kumon, após as aulas. E ele veio errado. Mais ruminação negativa. No mundo digital, eu ainda processava algumas chateações acontecidas pela manhã, coisas da vida virtual. Então, era uma espera num clima de baixa umidade emocional. Quase sufocante. E, vez por outra, meu homem ruim me dizia para eu ir lá fora, dar uns murros no porteiro, e depois corresse. rsrs.
Até que você apareceu segurando o boneco Naruto que recentemente te dei de presente. Estava todo feliz, até perceber que perdeu a cabeça do Naruto. Logo saímos à caça da cabeça e achamos a mesma largada no chão. Você ficou tão feliz, como se o Naruto voltasse á vida.
O teu melhor amigo e o pai dele, o Pedro, passaram por nós quando nos dirigíamos ao estacionamento.
Aí, tu me contou que hoje era aniversário dele. E com olhinhos tão doces me perguntou se poderia dar o Naruto de presente ao Pedro.
Eu disse que sim.
Você correu e o presenteou. Pedro ficou sem palavas, acho que ele desejava muto aquele boneco, e te abraçou. Eu e o pai dele, nos cumprimentamos efusivamente, celebrando a grandeza de teu gesto.
Aí entramos em nosso carro e nos dirigimos para o Kumon. No caminho, disse-lhe que teu gesto foi muito bonito, mas que não pode dar todos os presentes que recebe, pois eles carregam uma carga afetiva, e aquele tinha sido eu quem te deu.
Vocês escutou com atenção e perguntou o que é a "quequeca" que o Pedro tem na cabeça.
Eu não entendi a pergunta e pedi que explicasse como eram os sintomas. Aí você me contou que ele sente um pino entrando na cabeça, tem dor e que na hora que cantaram parabéns para ele ele chorou, pois estava doendo muito. Ahh, enxaqueca. O Pedro tem enxaqueca, disse-lhe. E você perguntou-me se passa, se cura, disse-lhe que sim. Aí fez cara de aliviado.
Falei que o Naruto ia ajudar o Pedro a desviar o foco da dor de cabeça, ao abraçar o amor que nele estava contido, pelo altruísmo do gesto. Expliquei com outas palavras o termo altruísmo, de dificil compreensao.
"JG, altruísmo é quando você doa seu lanche, ao saber que um amiguinho está sem tomar café da manhã, pois a mãe dele foi hospitalizada pela madrugada e o pai esqueceu de colocar a lancheira na mochila, pelo nervoso da situação."
"JG, altruísmo é doar o Naruto querido, presenteado pelo pai, a um amiguinho dele desejante, que sofre com uma dor de cabeça inclemente."
Sabe filho, esse teu gesto deverá continuar presente em teu viver. Não esqueça de doar teus Narutos a quem deles mais precisar. São apenas coisas materiais, mas o amor que irá neles, pode transformar vidas, de quem os receberá, de quem os doará.
Outro dia fui palestrar num evento de reflexão para a aposentadoria. Vi uns livros num pacote, e associei que seriam usados na próxima palestra, que era a de um amigo meu, o Gustavo Boog.
Olhei a capa do livro e o tema era: É urgente ser feliz. Lembrei-me que na minha palestra tem um slide que divulgo boas obras para a fase da vida da pós-carreira. Então, peguei o celular, fiz uma foto do livro, enviei para meu gmail, baixei no computador, e a inseri na minha apresentação. Tudo aos 30min do meu início, coisa que não se deve fazer, até para não se perder a cocnentração. Mandei os riscos às favas. Comecei a palestra e vi que o Boog chegara, e sentara nos fundos da sala. Veio prestigiar-me, e fiquei feliz.
No meio da palestra, mostrei o slide com os livros que sugeria, inclusive o dele. E fiz o reconhecimento ao seu trabalho a terceira idade e sobre a envelhescência.
Voltando para Brasília, vi que o livro que fotografei não era do Boog, era do Beto, o palestrante do outro dia, a foto dele era muito parecida no livro.
Altruísmo foi o Boog perceber meu erro e não intervir. Altruísmo foi a intenção de divulgar a obra de um amigo, num mercado editorial tão carente de público consumidor.
Então, amado filho, continue assim. Hoje você emocionou-me profundamente. Até em não responder ao meu discreto puxão de orelha, de doar tudo que tem de valioso, ao colocar o contexto da doação, o Pedro estava com "quequeca".
Nessa sociedade, dita pós-moderna, cultivar espaços de doação generosa de si mesmo ao outro, a uma causa ou à própria transformação interior, em busca de uma maior iluminação, é vital para a sobrevivência da coletividade.
Precisamos aprender a doar nossos melhores e mais raros Narutos. Doar tempo, doar afeto, doar encotnros, doar perdão, doar abraços, doar recomeços.
Por falar em recomeço, quarta vou pedir desculpas ao porteiro. Estávamos, os dois, de cabeça quente. E não é fácil a lida dele, naquela área de alta segurança. Um pedido de perdão, de forma sincera, pode ser também um gesto altruísta.
Sei que muitos te dirão para deixar de ser besta, bonzinho, afetuoso e solidário. Digo-lhe, não os escute.
Siga pelo bom caminho, mesmo se todos ao teu lado embrutecerem o coração, continue manso e atencioso para com a vida. Não se perca de seus melhores valores.
Ao conservá-los, pelos menos eles não terão conseguido te mudar.
Ser + gente na vida não é uma questão de só dar o que se recebe. É uma escolha incondicional.
Sem colocá-la como barganha, como comércio, por mais justo que pareça ser.
Na tua juventude e vida adulta, e até velhice, guarde esse menino que doou o seu melhor boneco, aquele da hora, para um amigo que sofria de dor de cabeça no dia do aniversario dele.
Não mate essa criança em você. Será ela que em ti fará rebrotar a vida, após aperreios pelos quais passará.
Pois, quando nos doamos ao outro, nossa vida não tem como permanecer igual ao que era antes do gesto, ela torna-se melhor e mais feliz!
E quem presencia estes gestos também fica feliz, por osmose, e acaba se vai nele toda a baixa umidade emocional, como se o amor do gesto que ele testemunhou, o preenchesse por osmose e inteiro, eliminando dele toda raiz de amargura e secura de seu coração, dando-lhe paz e renovada esperança de ser.
Ps. São 18h06min de 18/09/2017, o porteiro Adalfran toca a campainha e condia-me para descer, até o térreo no apartamento dele, para tomar chá, de capim santo e cidreira, e ainda convida-me para de lá ir caminhar com ele. "Pois somos sobreviventes e temos que nos cuidar". Diz, referindo-se às complicações cardíacas pelas quais passamos. São ou não são gestos altruístas? Disse-lhe que amanhã caminho, pois hoje escrevo para ti.
Não se preocupe, Tiago teu irmão já comprou o outro boneco no Naruto, ele me disse ontem. É aquele de nome esquisito que tu nos pediu no último sábado. E, caso cena semelhante aconteça, pode doá-lo também, caso teu coração fale mais alto.
Ps. 2. Como demorei a descer, ainda parindo esse texto, ele subiu e trouxe uma garrafinha de chá, a foto documenta esse instante. Percebe filho meu? A força de um coração que se doa? Ele sobe escadas, se preciso for, só para ver o bem estar de quem receberá dele, mais do que um chá, ou um Naruto, o gesto de amor. Sim, o chá estava ótimo.
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