Pelas 15hr saí para visitar aquelas lojas de "Pra que isso?", eu estava atrás daquele treco que amola faca e de algo que servisse para guardar uns DVDs.
Chegando perto do local, escuto na esquina o som de música ao ar-livre.
Sou fascinado por música ao ar-livre, e de qualquer espécie. Alias, pelos artistas de rua eu nutro o maior apreço.
Dei meia volta, estacionei perto, esqueci completamente da agenda, e me posicionei próximo para me deliciar com aquele show. E o cara era dos bons, depois soube que ele é o cantor de um importante restaurante de Brasília, o Coco Bambu.
Ele cantava uma música do Nando Reis, sucesso do momento, chamada: Só Posso Dizer
"Cada um de nós tem o seu próprio jeito de ser
Mas tudo que foi feito
Só fizemos juntos
Porque você ouviu a minha, e eu, a sua voz
Tudo que dissemos sempre teve efeito mas sobra
Um ou outro aspecto
E o inverso do direito é a busca do desejo sem culpa."
E a galera que estava no Bar Central, em Sobradinho-DF, cantava com ele, num bonito coral de boteco.
Tomei coragem, superei minha timidez de primeiras abordagens, e peguei um banco de balcão.
O proprietário logo veio me servir de uma geladinha e perguntei-lhe se toda terça tinha música ali.
Ele me disse que não.
Que a razão era o aniversário do churrasqueiro do estabelecimento, o Índio. E que os amigos deles, inclusive músicos que gostam dele, vieram prestigiar.
Tinha umas 40 pessoas, em mesas espalhadas pela calçada, e notei que os músicos alternavam-se nas canjas para o aniversariante.
Aí, ele passou ao meu lado e eu aproveitei para cumprimentar-lhe.
Ele olhou para mim, sorriu, e disse: "Não vale só me dar um abraço, tem que ir lá buscar a carne, feijão tropeiro e macaxeira."
E partiu para a "varanda" da calçada onde pilotava a churrasqueira.
No "palco" assumiu a canja o Negão de Planaltina, com uma voz que deixaria Tim Maia com inveja. Ele começa logo com um samba de Jorge Aragão chamado Coisa de Pele e o pessoal delira:
"Podemos sorrir,nada mais nos impede
Não dá pra fugir dessa coisa de pele
Sentida por nós,desatando os nós
Sabemos agora,nem tudo que é bom vem de fora
È a nossa canção pelas ruas e bares
Nos traz a razão relembrando palmares
Foi bom insistir,compor e ouvir
Resiste quem pode à força dos nossos pagodes
E o samba se faz,prisioneiro pacato dos nossos tantãs..."
Naquela terça, eu estava me sentindo um tanto saudoso, arrotando melancolias mal dormidas;
Mas, notei que na segunda música meu estado de espírito já era outro. Agora sim, o Ricardim voltou!
Chamei o proprietário, pedi mais uma cerveja, animado pelos Tantãs, e perguntei-lhe como era o esquema da comida. Se eu pegava lá, no local que o Índio estava, ou se trazia o valor para ele botar na conta.
Ele sorriu e me disse, "como assim?".
"O Índio não te convidou?"
Eu falei que sim, mas que não sabia se iria ficar, e agora irei até a última música das canjas.
Então ele fez um sinal para o Índio. E o Índio se aproxima com uma farta porção de carne, feijão tropeiro e macaxeira, sorri para mim, e diz, "hoje é tudo por minha conta, seja bem-vindo".
Uauuu!! Eu não acreditava na generosidade da cena.
Quando ele voltou para a churrasqueira o dono do Bar Central me disse que ele quis comemorar os 50 anos, fazendo o que gosta: servindo churrasco onde trabalha. Mas, dessa vez sem cobrar nada. Já estava pago.
Um céu se descortina no local. E comecei acompanhar o Índio que não deixava ninguém com prato vazio.
Ele assava e servia as mesas. Em cada mesa parava, fazia fotos, e levava pedido de músicas para seus amigos que davam canja.
Então disse ao dono do bar que me sentaria bem perto dos músicos, e do Índio, no chão mesmo, num degrau de calçada, para prestigiar o evento.
Aí era só coisa linda que via. Gente que vinha só abraçar-lhe, não ficava. Gente que passava na calçada e ele perguntava se queriam ficar. E até alguns moradores de rua vieram fazer quentinha com ele, que os tratou como se fossem Vips.
Peguei a nota de R$ 100,00, aquela que destinaria a comprar coisas que não preciso, e que podem ficar para um dia qualquer, me aproximei dele e disse-lhe que iria dar-lhe o presente de aniversário, e coloquei a nota no bolso do .jaleco dele, impecavelmente branco.
Ele botou a mão no bolso, olhou para aquela nota fixamente, e se aproximou de onde eu estava sentado. Ele então me disse: "Senhor, será que não pegou a nota errada?".
Dei uma gargalha e disse-lhe que não.
Ele me abraçou e disse, "vai dar para comprar mais carne, que já estava acabando, muito obrigado" .
Ao lado do bar da Central tem um açougue, então pude vê-lo entrar nele e sair com mais carnes.
Ele não queria dinheiro. Ele queria prazer, prazer de doar para os presentes o que ele tem de melhor, a capacidade de acolher, de celebrar a vida, e de querer que não faltasse carne para esse momento.
Lembrei daquela cena que Maria diz a Jesus, num casamento em Caná; "Eles não têm mais vinho".
Ele não tinha mais carne, e deve ter investido muito, pois o local estava cheio.
Eu degustei da alegria do Índio pelos 50 anos. Como ele estava feliz!
A felicidade dos simples tem uma complexidade que para vê-la precisamos nos despir de nossa pele burguesa e nos permitir comungar com gente sem títulos, posses ou poder de qualquer espécie. Pessoas comuns, com atitudes incomuns, pobres de orgulho material e mansos de emoções.
Perto das 17hrs, despeço-me dele e volto para o balcão, para pagar minha cervejas.
Aí ele se aproxima, me entrega uma quentinha e diz: "É para você levar para casa".
Eu mordo a língua para não dar vexame e chorar. O Negão se aproxima e pergunta se não quero pedir uma seresta, saideira, eu pergunto se ele sabe Ronda, ele abre um sorriso, dirige-se ao "palco" e solta o vozeirão: De noite eu rondo a cidade a te procurar sem encontrar. Em meio de olhares espio, em todos os bares você não está.
Enquanto digito esse texto como um risoto que fiz pedaços do churras que o índio me deu.
Esse risoto que como e que está suculento tem um sabor especial. O sabor da generosidade de um coração que aprendeu a servir e a doar-se, e faz disso o sentido do seu viver.
Voltei hoje por lá, fui presenteá-lo com meu livro. Mas, o chefe disse-me que hoje é o dia de folga dele. Outro dia irei.
Preciso fazer terapia do amor ao lado dele. Vou pegar uma mesa bem próximo, para dele receber as boas emanações de emoções positivas tão raras hoje em dia.
Quem de nós, no dia do aniversário, chamaríamos todos que passavam pelo local para conosco comer e celebrar?
E por isso que acredito que a Humanidade tem cura. Há pessoas lindas que podem nos ensinar muito. Verdadeiros sábios.
Mas, para que possamos aprender e participar de suas aulas, teremos que desaprender um monte de coisas que fomos internalizando, criando em nós verdadeiros monstrinhos:
o orgulho, nosso jeito de pensar a vida bem burguês, o medo e o nojo de pobres, os preconceitos com os "diferentes", as nossas verdades quase sagradas, tudo isso que mais separa do que junta. Mais cria muros do que pontes.
Que possamos nos inspirar nessas pessoas tão simples, mas conhecimentos bem complexos do que realmente se faz uma vida que por ela vale a pena viver.
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