Adalfran tem um cavalo que se chama Paul. Paul mora de aluguel, num rancho na área rural de
Sobradinho-DF, a 8 km de onde Fran trabalha e mora.
O pangaré custa por mês 1/4 do salário de Adalfran, recebido como zelador do prédio.
Todos os domingos ele visita Paul e ambos passeiam pelos prados, montanhas e até pelas áreas urbanas de Sobradinho-DF.
Quando Adalfran monta no seu Paul, ele deixa de ser um zelador-histórico, daqueles que viram patrimônio imaterial dos prédios em que trabalham, no caso dele, desde 1999. Ele vira um garboso cavaleiro, e segue valente desafiando o carrossel do destino de seu viver.
Quando ele fala do Paul seus olhos faíscam de felicidade, e sua expressão é de ternura.
Um dia vou dar uma volta no Paul, ele já me chamou, e não vou perder essa chance. Embora não saiba cavalgar.
Adalfran não tem vida mole. Ele é o único zelador de um prédio com 4 torres, de três andares, e 48 apartamentos. Ele trabalha muito, e está sempre de bom humor, uma de suas marcas Ele sempre tem uns segundos de atenção para cumprimentar quem por ele passa.
Seja com um bom dia caloroso, ou com alguma pergunta sobre algo da vida dos "seus" moradores.
Logo depois ele volta à vassoura, ao rodo, mangueira e tudo mais que usa no seu trabalho de varrer, limpar, recolher lixo indevidamente colocado e molhar as plantas.
Conheço ele desde dezembro de 1999, quando comprei o meu apartamento no Ed. Vitória, o 312, e ele sempre foi assim. Atencioso, cortês e uma profissional que exerce na prática a liderança servidora.
E ainda ajuda os moradores com dificuldade de locomoção a subirem com suas compras, ou harmoniza brigas dos mais intolerantes uns com os outros, por erros de estacionamento.
Sem falar que é uma mão na roda para guiar os visitantes perdidos, sem saberem qual a torre correta de seus amigos.
É meus amigos!, Adalfran é um daqueles profissionais que faz de seu trabalho serviço e que desaprendeu a resmungar e a passar o dia inteiro procurando razões para ser infeliz nele.
E isso torna-se perceptível na forma pela qual nos trata e na qualidade do trabalho que produz.
Adalfran é uma daquelas pessoas que ocupam o espaço com sua presença, e tornam melhor a vida de quem por elas passam.
Uma marca de sua presença é o assobio. Eu sei que ele está por perto pelo seu assobio. O assobio do Fran é uma de minhas companhias prediletas, quando tenho contrações literárias, ao parir meus textos, produzidos nos silêncios das manhãs como este que escrevo.
Ontem, quando fui deixar o lixo lá fora, deparei-me com ele limpando a sela de Paul. Uma sela toda estilosa que trouxera da Paraíba. Ele a limpava com tanto esmero, quase em estado de Flow(*), que nem me viu chegando perto.
E eu pude contemplar a cena de longe, degustando-a em sua completude e boniteza. Depois, dirigi-me à ele devagarinho, curtindo mais um pouco aquele momento de profunda entrega.
Ele alisava os pelos da sela, e com olhos de lince procurava sujeiras entranhadas na parte debaixo da sela, aquela que faz contato com o Paul. Como que não querendo que nada o machucasse, além do fato de morar num estábulo. Disso ele entende, de estar como que preso num estábulo na vida, sem maiores oportunidades para a ascensão social. Mas, nunca o vi reclamar de sua saga. Fran não é de reclamar das ondas da vida, ele aprendeu a surfá-las, com o melhor que tem e como pode.
Sempre que quero me sentir melhor pergunto ao Adalfran sobre o Paul. Aí, quando ele começa a falar de seu cavalo eu, por osmose, recebo uma lufada de emoções positivas. E, quando saio de sua presença, sinto-me de mente arejada novamente.
Paul é terapêutico. rsrs
Paul significa para Adalfran um portal por onde ele acessa o desejo. Por ali, ele atravessa a si mesmo e transforma-se em nova criatura, agora não mais refém do personagem que vive, a maior parte do tempo, em sua sina tão pobre e dura.
Precisamos de nossos Pauls. Precisamos de portais de esperança. Precisamos ter um cantinho de visitar nossos desejos, para que periodicamente renovemos e restauremos a coragem, ou ousadia, de existir.
Imagino a felicidade dele quando vai se aproximando a hora de encerrar o expediente no sábado e poderá ir ver o Paul.
Imagino as vezes em que ele teve que renunciar a outros gastos, para não faltar o pagamento das despesas do Paul.
Imagino eles conversando sobre a vida e o viver, quando ambos tomam o vento da liberdade nas suas faces de apenados do destino.
Imagino a expressão deles, a troca de carinho, de afetos mil, ao terem que se despedir, no final de um domingo de muita amorosidade.
Quem já se despediu de quem gosta, ou tem saudade de amor distante, sabe do que falo.
Paul é um Portal de Vida para Adalfran. E na vida, precisamos de portais do tipo Paul.
Precisamos de portais que nos remetam a algo para desejar, algo para amar, algo para esperar, algo para cuidar e algo para admirar. Aqueles que nos projetam para além de nossas vidas severinas.
Daqueles, que ao nele ingressarmos, ficamos reluzentes, transformados e novas criaturas somos.
Escuto o Adalfran assobiando novamente. O assobio dele é um de meus portais.
Acho que ele solfeja o tema de Cinema Paradiso, ou será que agora sou eu quem entra em Flow ao evocar a amorosidade que essa canção me remete?
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(*) FLOW - O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, em seu livro sobre o Flow, o define como: “um estado mental onde o corpo e a mente fluem em perfeita harmonia, é um estado de excelência caracterizado por alta motivação, alta concentração, alta energia e alto desempenho, por isso também chamado de experiência máxima ou experiência ótima. As experiências de FLOW muitas vezes são lembradas como os momentos mais felizes da vida da pessoa, os momentos onde ela se sentiu no seu melhor. Geralmente a pessoa entra no Estado de Fluxo (Flow) quando ela está fazendo aquilo que ela mais gosta de fazer. Pessoas entram em fluxo dançando, cantando, correndo, praticando esportes, desenhando, pintando, escrevendo, meditando e até trabalhando. Naquele momento, você não pensa em mais nada, não pensa nos problemas que ocorreram antes, nem no que terá de fazer depois, fica inteiramente focado no presente – no aqui e no agora.”
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