Era terça gorda de carnaval, e Lis seguia para sua matinê, num evento no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. A cena que vi detonou lampejos de memórias em meu coração. Lembrar-se tem se tornado mais difícil, por isso escrevo para você. Para não esquecer de me lembrar, jamais.
Uma das compotas afetivas mais doces de minha infância, foi produzida aos 9, 10, 11 e 12 anos quando viajávamos para o sertão do Rio Grande do Norte, terra de minha mãe, e no sítio Barra do Câimbra, entre Caicó e Serra Negra do Norte, passávamos o carnaval com a primarada. Eu e teu tio, o Guga, éramos os únicos primos entre as primas: Tatiana, Elvira, Ana, Digna, Rosa, Tereza e Elisabeth. E tudo era tão alegre, inocente e bonito. Num tempo em que ainda não se erotizavam as relações afetivas.
Mamãe, tia Lila e Tia Laurita passavam as manhãs daqueles dias preparando nossas fantasias, que seriam usadas nas matinês dos clubes das cidades vizinhas, ou em desfile de Corsos (pessoas que desfilam dançando em cima de carroças, tratores, caminhonetes e caminhões, como numa carreata).
E toda a família participava. Era um tal de lantejoula pra cá, colar e turbantes pra lá, e todo tipo de adereço que aparecia na hora, com direito a elaboradas maquiagens.
E tudo era festa.
As boas festas já começam dantes.
Mamãe e tia Lila faziam as vezes de Catarina, e nos levavam até os bailes infantis, para nos proporcionar aquele momento mágico.
Numa das vezes em que deles voltávamos, não havia mais como chegar no sítio, pois caíra uma tromba d´água, e já era noite.
A estradinha de terra era cortada por um rio seco, que encera bastante, e ficamos ilhados, naquele breu da noite. O jeito seria dormir no carro, e esperar o rio baixar.
Mas, ao longe começamos a avistar umas luzinhas, uns clarões que sobre o breu da noite se destacavam.
E fomos ficando animados, seria nosso socorro que vinha vindo?
Aí apareceram do outro lado da estrada, agora cortada pelo rio, os nossos tios e meu pai, montados num trator. A cena era de filme de cinema, de tão bela.
Eles vieram nos socorrer, mesmo sem nenhum tipo de comunicação entre nós (não havia celular), e sem saberem nossa hora de chegada. Ainda assim, eles intuíram que o rio iria nos prejudicar, em nosso retorno, e vieram nos salvar. E puxaram nosso carro com um trator.
Naquele dia, eles viraram nossos heróis. Assim como nossas tias e minha mãe, que não poupavam esforços para nos dar o direito ao brincar.
Ontem, passou aqui por perto de casa um carro vermelho, com o porta-malas aberto, com caixinhas de som tocando marchinhas de carnaval, e umas 20 pessoas seguindo-o bem animadas.
Fiquei comovido. Teu irmão Rodrigo me disse que todo ano eles desfilam, na terça feira gorda. Por falar em Rodrigo, ele me mostrou a foto dele e de Andreza, tirada de cima do bloco Camaleão, do Bell Marques, em Salvador.
Aqueles ali sim, sabem festar a vida. Assim como Priscila e Hugo, Tiago e Carol, que se divertiram em blocos no Parque da Cidade.
Sabe filho meu, essa carta não é sobre carnaval. Tu tem o direito a não gostar. Embora eu tenha decidido te levar aos bailes infantis, a partir de teus 9 anos, mesmo assim tu tem o direito a não gostar.
Assim como tem direito a não gostar de São João, e suas quadrilhas e forrós. Ou não gostar das festas de virada de ano.
Só tome cuidado em deixar de festar a vida. De tanto não gostar de brincar e se permitir fazer coisas do domínio do Homo Ludiens Demiens.
Qual lógica existe em sair entre centenas de pessoas atrás de uns bonecos imensos, subindo e descendo ladeiras?
Qual lógica existe em se fantasiar de batman, ou a sua girl, e sair por aí com seus amados, todos posudos?
Não filho meu, não tem lógica, falando estritamente do mundo racional.
E, querer entender os fenômenos culturais pela lógica racional é pura perda de de tempo, ou manifestação da vã arrogância do saber.
Qual a lógica dos Bois de Parintins?
Da Congada e do Reizado?
Dos Ala Ursa?
Dos Casamentos Matutos?
De dar três pulinhos à beira-mar?
Qual a lógica de um ajuntamento para celebrar a festa da cumeeira, num churrasco na laje, em local sem banheiro, ou conforto?
Qual a lógica de ficar cantando o hino de seu clube, até se esgoelar, mesmo com ele já desclassificado?
Qual a lógica de fazer um caminho de pétalas, para ela passar?
Nenhuma, ou todas. Depende do olhar que tenha, filho meu. Existe uma dimensão do olhar que é a da poesia, do ser brincante, do ser afetivo, do ser amoroso e coletivo que somos.
E, essa dimensão não cabe sua interpretação dentro da lógica formal, nem em planilhas de excel.
Nas belezuras do ser humano em seus momentos de amor, brincar, festar e celebrar a vida e o viver.
Não sem razão, uma das inscrições rupestres mais enigmáticas, que data 9.000 anos, tem moldado numa parede de uma caverna 829 mãos, ajuntadas, umas perto das outras.
Aqueles povos ancestrais nos deram uma aula, sobre a importância do coletivo, não deixando nenhuma mão de fora, da comunidade onde viviam, que ali quiseram que elas se eternizasse.
Ao olhar para aquela pintura, na Caverna das Mãos, que fica na Patagônia -Argentina, cada um deles se reconhecia, num nós.
Então, amado filho, essa carta é sobre a beleza de se estar juntos. Seja o que estiver fazendo. Se não gosta de carnaval, e foi com uma turma para um retiro espiritual, tá valendo.
Se não gosta de réveillon, mas reuniu tua família e amigos para uma confraternização em teu lar, tá valendo.
Só não vale o culto ao individual.
Estar com os outros nos cura. E, tu verás, que em muitos momentos de teu viver precisará de pessoas para melhor apreciar os bons momentos que experencia.
E é isso que as festas populares fazem, desde as quermesses de interior, aos bailes de funk na periferia, tudo que junta gente, as faz dançar, conversar, confraternizar, sorrir e brincar, ao despistar o sofrer do cotidiano, pode torná-las melhor.
Ano que vem irei ver os desfiles das escolas de samba, ou subirei as ladeiras de Olinda, ou sairei atrás de algum trio em Salvador, pode anotar! Mas, antes de levarei para alguma prévia por aqui, ou na minha Paraíba, tipo as Muriçoquinhas de Miramar, lá em João Pessoa, ah se vamos!
Então filho meu, permita-se a pagar micos, brincar de não saber, aprender algo novo, aventurar no desconhecido, superar medos e traumas desafiando-se a si mesmo, a sorrir com brincantes desmiolados, a celebrar tudo, inclusive o nada - só por estar vivo, e a se animar com as besteiras que falamos para fazer os outros, e a nós mesmos, sorrir, num processo de humanização tão bacana pelo qual muitos de nós se entregam quando estão juntos. E que é nossa melhor porção da vida e do viver. O resto serão as preocupações e as decisões de qual conta poderemos pagar!
A isto chamamos de bem viver!
Lindo! O coletivo é mais difícil, mas muito mais legal.
ResponderExcluir