Mesmo sem ver, não estamos sós! (Autor Ricardo de Faria Barros)

Era um daqueles dias em que acordamos com azia emocional, lembrando das coisas que deixamos para trás, não realizadas, ou nas quais demos com os burros n´água.

Todos temos dias assim, nos quais do nada vem aquela ressaca emocional e nos sacode.
Então, resolvi buscar minha terapia para dias cinzentos, que é caminhar. Nesse dia, tive sorte de estar na praia de Coqueirinho do Norte (Baía da Traição-PB).

Praia pouco frequentada, e atracadouro natural de pequenos barcos pesqueiros, cujos pescadores por ali moram.

Deixei JG com meus pais, e segui  para minha terapia andarilha.  

Após um quilômetro de caminhada, olhei para trás e vi que deixava um rastro de pegadas, e que eu e elas éramos os únicos que tocavam naquelas areias. Naquela manhã de segunda feira, pelas 9hrs.

À frente, nenhum sinal de humanos, e por uns bons 2 km. 

Tive uma sensação de que estava só, naquela jornada em direção ao molhe. 

Quantos dias acordamos com esta sensação de estarmos sós, diante da vida que precisa amanhecer em nossos corações, e que ainda se apresenta nublada, prologando os ecos de uma madrugada de sentimentos?
   
Comecei a prestar atenção no que ocorria à minha volta, como quem procura se conectar a algo maior, para ajudar no nascer do sol interior.

Não havia qualquer som urbano,  na partitura daquela caminhada. 

Ouvia o som dos ventos, o canto das ondas, e o grasnar das aves de beira-mar. 
Esforcei mais um pouco a percepção e juro que ouvi os barquinhos conversando com a maré, em sua negociação de espaços.

Fixei o olhar à minha frente e vi pequenos tracinhos moldados na areia.

Fiquei encasquetado com aquilo, e eram muitos, que já estavam ali e eu não tinha notado antes.

Olhei para trás e confirmei que ali também eles estavam.

Eu é que não tinha percebido ainda.

Quando acordamos "pegando mal" no motor de nosso coração, acabamos por não ver um monte de coisas que ao nosso lado acontecem, coisas boas, belas e virtuosas.

Então não mais me senti só. Aquilo que eu via eram as pegadas das andorinhas da praia, que alimentavam-se à beira-mar.

Tão tenras pegadas, tão frágeis, mas estavam ali, como sinais a me dizer: "Ei, venha cá, estou á sua frente, abrindo caminhos...!

De repente, uma paz tamanha invadiu meu coração.  E lembrei que na minha vida também existe um monte dessas pegadas.

Quase imperceptíveis, que agem sem barulho, sem ostentação, que deixam marcos em meu viver, e não marcas.

Tão cuidadosas, tão cheias de amor, que vão à minha frente, abrindo caminhos, desbravando sonhos e fazendo construir os novos dias possíveis.

Não estamos sós!

Nem bem digitei essa frase acima, e o WhatsApp apita, avisando de nova mensagem.  Paro para escutar e é o Adalfran, zelador do prédio, dizendo que passou cedo para deixar um café para mim. Que está na soleira da porta, já que não acordei quando ele tocou a cigarra.

Não estamos sós!

Numa comunidade em que participo, um neto de uma das participantes teve reação à vacina da febre amarela.  E está hospitalizado. Gente de todo o Brasil, participantes dessa rede, se irmanam em preces e mensagens de otimismo. Aquela vovó não está só.

Um carro quebra na faixa do meio da BR 020, sentido Sobradinho-DF para Brasília. O trânsito fica infernal. Um motorista de outro veículo para o carro, desce, e ajuda a empurrar o carro quebrado  até o acostamento. Colocando a vida dele em risco, e até o carro que parou onde dava. 

Uma amiga acompanha a retirada de um sinal do meu nariz, as dores após anestesia, e monitora a ingesta dos remédios prescritos. Às três da manhã, recebo um zap com: "Como está a dor? É hora de tomar a segunda dose dos remédios!"

Não estamos sós.

Embora nossa estado de iluminação espiritual nem sempre deixe ver, muita gente já acordou antes de nós para preparar nosso café da manhã, nas horas e dias que nos sucederão.

Entendem a metáfora?

Essas pessoas são como as andorinhas de praia. Quase não são percebidas, de tão elegantes que pisam sobre o terreno do viver. Mas, deixam seus sinais de presença em nossa caminhada. Nossas pegadas não estão mais sozinhas. Elas seguem um rastro do bom, do belo, do manso e solidário, de muitos que estão à nossa frente, abrindo caminhos. Nos ajudando.

E, muitos nem conheceremos que são. É aquela recepcionista que conseguiu te encaixar entre uma consulta e outra.

Pensamos, "que sorte".  Sorte nada.  São as pessoas-andorinhas que deixam nosso viver melhor, mesmo sem as reconhecê-las, ou perceber seu papel, elas estão ali presentes - tornando nossa vida melhor.  

E suas pegadas são marcos em nosso viver, não deixam marcas em nosso couro, pelo contrário, são como band-aids que protegem nossas feridas emocionais, dando a elas tempo e melhores condições de cicatrizarem.

Cheguei à uma curva de praia, olhei para trás, e vi que a maré levou minhas pegadas.

Mas as da andorinhas não, pois elas subiam a areia da praia, acompanhando a evolução da maré.

Então lembrei que a caminhada se faz é no caminho em que se olha pra frente. E que precisamos também subir a areia, sempre que a maré for forte e crescente.

E que o Compositor do Tempo se encarregará de apagar as pegadas passadas, e que precisamos de novas pegadas. Precisamos continuar a nossa jornada. 

Não adianta voltar pelo caminho, querendo pisar sobre o pisado.  Aquilo já não existe mais, a força das marés já apagou o terreno pisado, depositando nele novas e virgens areias, ansiosas por novos pegadas. 
Isso mesmo, novas pegadas. É isso que podemos deixar, ao focar no presente e futuro. Pegadas mais cuidadosas, amorosas, mirando na terra para não pisar em cima de coisas que nos farão mal. 
Quase marcos ou sinais, como os das frágeis andorinhas que me disseram: "Ei, estamos aqui te fazendo companhia, não estás só".

Não estamos sós!   Um monte de coisas estão acontecendo na janela do amanhecer de nosso viver, aquele que vem ali dobrando a esquina, e que nele existem um monte de situações e gente preparando e facilitando o terreno para nosso existir. 

Só precisamos reconhecê-las e ser-lhes grato.  É preciso perceber as pegadas à nossa frente, nos amando e orientando, como sinais de si mesma.
E, elas nos conectarmos, sentindo-nos mais protegidos e corajosos para enfrentar o futuro, com todas as suas incertezas, mas cheio de esperança. 
Não há mais trilho do caminho na volta.
O mar apagou.

Agora, resta-nos moldar nossa vida com novas pegadas, palmilhadas à frente, sem ficar remoendo, vitimizando-se, ou num saudosismo impotente, que insiste em querer  voltar de onde já se veio.  

As pegadas passadas nos falam, são como professoras da vida que com elas podemos aprender muito.
Num esforço de humildade, para além da arrogância do ser e do saber, ou de estéreis justificativas. 

Sem querer voltar por onde já passamos.

As marcas que deixamos nos outros, e em nós mesmos, fazem parte de nossa história de vida.  Mas, são janelas que se abrem para o passado. O máximo que podemos fazer é aprender com elas, para não mais marcar pessoas em nosso conviver. E ser para elas marcos, que sinalizam só coisas boas.  Como os pezinhos das andorinhas naquela terra, sinalizam para mim que eu não estou só.

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