Lance suas marcas para que outros as levem...

"Não estou aqui para deixar marcas, estou aqui para levar marcas.”  Marcos Igreja

Esta reflexão do Igreja muito me tocou. Para mim foi quase mística, como boas igrejas o são. Numa tarde nublada, chuvosa, tendemos a ficar reflexivos. E hoje é uma dessas tardes. E reflito sobre marcas: boas – tatuagens, por exemplo; e as de lutas travadas – cicatrizes da alma. Que teimam em reabrir e doerem, tempos e tempos depois.
Ando ficando assustando com minhas memórias que me açoitam ao dormir.
Parece que minha amnésia, fruto de um acidente de moto em 1985, vem me assustar naqueles momentos que o sono vem chegando.
As lembranças, memórias, ditos, não ditos, amores não amados, sofridos, alegrias, soluções, tudo vem em flashes sem muita ordem cronológica.
Quando fecho os neurônios tentando lembrar-se de mais algo, estas desaparecem faceiras - faceiras e fugidias memórias.
Dormir tem sido divertido, e às vezes doloroso. Coisas da faculdade de psi, dos primeiros tempos de BB, dos tempos de seminarista, e até do curso de engenharia civil que fiz por 2 anos ½ chegam em estalos luminosos.
Caminhos, veredas, atalhos que peguei tudo vai revelando-se novamente, em fotos retrôs.
E, numa dessas noites o que vinha á mente era Poções-BA e meus primeiros tempos de BB, em 1986.
Cheguei tão assustado ali. Tudo era novo, sair a 1.800km de casa. Com um filho de um ano e uma dificuldade imensa sobreviver. O salário de escriturário sempre foi achatado. E não tive ajuda mudança, ou aluguel – muito caro em cidades com pouca oferta.
Era um mundo que se descortinava, tudo novo.
E esses flashes vieram à mente ao ler um tópico no Facebook de Marilúcia dizendo que seu esposo, o Alcione iria aposentar-se.
Alcione deixou marcas em mim.
Sim, Alcione me fez aprender, na pele, que podemos deixar marcas nos outros.
E ele as deixou em mim.
Marcas boas. Lições de vida.
Alcione era só bondade.
Só empatia, amizade sincera.
Alcione entra num momento delicado de meu viver. Quando senti o abandono do lar de minha família. É que ao final do primeiro semestre de Poções-BA, em dezembro de 86, minha ex-esposa me deixou.
Não conversamos sobre aquilo. Ela pediu-me para ir passar o Natal em casa, em Campina Grande-PB, com meu filho mais velho, hoje com 29 anos, o Tiago. À época com 1 anos e 6 meses. Eu achei a ideia boa, ela estava muito triste em casa.
Do Natal veio o ano novo, as festas de Reis e ela foi ficando, sempre adiava a vinda.
Um dia, em janeiro, seu pai me ligou e disse-me que tentaria minha transferência. Que minha esposa adoecera e que não voltaria mais.
Então senti o que é ficar só. Sem raízes.
Chorava de molhar a fronha.
Acontece que ela deprimiu, só de saber que voltaria para Poções-BA, e não tinha mais condições psicológicas de sair da nossa cidade. Teve banzo em estágio avançado. Não a julgo. Compreendo.
Mas dói.
Como dói.
Agora eu ficara realmente só. E tudo era difícil. Não tinha as facilidades de voos de agora, ou de comunicação. Aliás, telefone era item de luxo.
Eu tinha 22 anos. Era um aprendiz da vida e do viver.
E aí foi que as palavras do Igreja me tocaram bastante. Alcione deixou marcas que as levei. E, acho que esse é o sentido mais abençoado das marcas.
Não deixar sua marca, como um projeto narcisista. Mas lançar suas marcas na vida, nos que contigo conviverem, levar marcas.
Se você não lançar suas marcas, como os outros vão poder levá-las?
E foi isso que Alcione e Lucinha fizeram comigo. Lançaram suas marcas de amor, de solidariedade, de carinho.
Qual casal hoje, com filho pequeno, adota um marmanjo de 22 anos nos finais de semana?
Pois eles me adotaram.
Nunca faltava um almoço de domingo – dia prosopopético para os sozinhos.
Lembro até hoje da sala de ovo que a Lucinha preparava.
Das macarronadas.
Na sexta à noite o Ciça já me chamava para “tomar água”. Ao lado da agência tinha uns botecos e não íamos pra casa sem antes darmos uma nivelada.
Ele me pegou pra criar.
No Banco foi meu primeiro chefe, mais que chefe, líder – admirado por todos.
Ensinou-me o valor da disciplina, dos estudos, da responsabilidade, do amor ao BB, do trabalho em equipe e ética. Alicerces que nortearam minha carreira.
Lembro que aos oito meses de BB fui chamado para substituí-lo, por um curto período.
Ele me disse: “Sabe quantas pessoas no BB substituíram o Supervisor do Setor Interno (SETIN) com oito meses? Você tem ideia da importância da missão lhe outorgada?”
O SETIN era uma espécie de Setor Administrativo, cuidava da contabilidade, malote, comunicações, e envio e conferência de material para processamento.

E voltando a minhas curtas insônias oníricas, o tema aposentadoria do Alcione veio em minha mente.
Lembrei-me de muitas cenas, não completas, como já disse.

Sexta passada tomei coragem e liguei para ele, cumprimentando-o pela aposentadoria.
Fazia muitos anos que não nos falávamos. Desde 1994, quando ele foi à João Pessoa e eu com meu casamento já em crise não pude ser o anfitrião que sonhara.
Do outro lado da linha a mesma voz vibrante, crente na vida, alegre.
Era o Ciça.
Perguntei-lhe se ele tinha certeza da decisão de aposentar-se, afinal o BB é quase um casamento.
Ele falou-me que sim. Que estava cansado e que estava tenho dificuldade em relacionar-se, em orientar os mais jovens, que chegavam com outros valores.
Que era outro BB.
Senti uma ponta de mágoa e desconversei.
Falei que há vida lá fora, há vida fora da empresa-útero, há um pós-carreira que se descortina.
E, ele com uma voz segura: “claro”!
- Ricardo, sabe o que fiz no último final de semana – na roça? Semeei mais de 500 covas de milho. Mesmo com a seca, acreditando que vai chover. E cuidei de umas vaquinhas que tenho.
Pronto, sosseguei o coração. Ciça estará em boas mãos, na vida para além da Instituição. Um cara que planta e cuida será feliz na aposentadoria.
Aposentadoria é plantar e cuidar de coisas que nos dão sentido.
Nem que seja um milharal e umas vaquinhas.
Ciça deixou em minha suas marcas. Lucinha idem.
Como fui amado. Eu não estaria no BB sem aquela família. Sem outros amigos de Poções-BA que ao casal se juntou. Deraldo, Antonio Carlos, Pedro Nelson, Messias e Eva todos me adotaram.
Só sabemos o impacto que as pessoas causaram em nosso viver tempos depois. Na hora, estamos com a coragem dos sobreviventes e não dá tempo de lembrar. É remar, remar, remar!
Hoje compartilho contigo que me lê, motivado pela reflexão de “levar marcas” do Igreja e da aposentadoria do Ciça.
Sou um abençoado da quantidade de marcas que carrego, que levo comigo.
Como pessoas lindas jogaram em mim o que tinham de melhores.
Marcas de amor, de afeto, de compreensão, de ajuda.
Tenho também muitas cicatrizes, essas são as medalhas que com orgulho carrego.
Nada foi e é fácil. Nada! Quase enlouqueço de saudade do Tiago, da esposa e meus pais. Além de ter passado maus bocados financeiros, tendo que me virar – após o expediente, para ganhar uns trocados extras fazendo um bico como professor de natação na AABB – Poções, o que me tornou mais forte ainda.
Assim sendo, pelas pancadas tempos e tempos que venho tomando, estou sempre em provisória acontecença, esperando qual a próxima tragédia, fatalidade.
Mas espero que não venham mais. Na dúvida, caminho alegre e amoroso. Afinal, se eu puder lançar também minhas marcas nos outros, para que eles as carreguem, não será de ódio, mágoas, maldade.
Serão marcas amorosas, em retribuição ás que recebi. Quantas as outras, não tão amorosas, catei as pedras em mim lançadas e com elas faço um altazinho. Afinal, pedras - material de que é feito as marcas lançadas de forma agressiva, fazem parte de qualquer história de vida.
Temo e peço perdão pelas que lancei. Espero que também estejam em algum altazinho. Que não tenham destruído pessoas que comigo conviveram.

Lance suas marcas boa. A humanidade agradece.

Encerro essa conversa contigo sobre Igrejas, Alciones, Lucinhas, Mascas, Cicatrizes com uma bela canção da jovem guarda, que agora escuto e te dedico:


Marcas Do Que Se Foi
The Fevers
"Este ano quero paz no meu coração
Quem quiser ter um amigo
Que me dê a mão
O tempo passa
E com ele caminhamos todos juntos
Sem parar
Nossos passos pelo chão
Vão Ficar
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer
Este ano quero paz no meu coração
Quem quiser ter um amigo
Que me dê a mão
O tempo passa
E com ele caminhamos todos juntos
Sem parar
Nosso passos pelo chão
Vão ficar
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer”

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