Com que mesa?

Com que mesa?    By Ricardim

O ambiente de trabalho estava tenso, a visita do auditor, se é que auditores fazem visitas, fora antecipada para as 16hrs de hoje. 
Um corre-corre, todo mundo estudando as últimas práticas de pessoas na Ditec, e sua relação com a ISO 20.000. Outros colecionando evidências ou tentado imaginar o que seria a banca de perguntas e aferição.
Pra piorar sabíamos que os outros processos auditados tinham sido aprovados e que o nosso era o último. Aumentava em muito a expectativa. Não podia ser, justamente nós, onde o bicho iria pegar, ou seja, fazer feio.
Na hora combinada, um dos gestores da área vai ás pressas ao banheiro. O auditor chega e o cumprimento sozinho. Penso, isso é hora do Lyra ir ao WC. E se o cabra me pergunta algo e titubeio.
Nem bem terminei de alinhavar esse pensamento, lá vem o Lyra, todo faceiro, mais aliviado, supunha.
A seção de aferição dos aspectos e capacidades relacionadas ao RH, no que tange ao gerenciamento de serviços de TI, começa.
Simpatizo de cara com o auditor. 
Fala mansa, risonho, procurou deixar a todos mais relaxados. Missão quase impossível.
Vai perguntando e ouvindo com atenção, aqui e acolá deixando escapar um gesto traído de quem tá gostando do que analisa.
Todos vão ficando mais calmos e vamos nos soltando.
O auditor da ISO 20000 chama-se Reinaldo, e fica tirando onda com os psicólogos presentes, e olhe que somos uns seis.
Diz que tem medo de psicólogo. Não sabe ele que eu também.
cacaca

Com o ambiente já bem descontraído, final da auditoria de inspeção, laudo positivo, abre-se uma pauta de amenidades.

Agora aquele, antes distante auditor, era gente que nem a gente. Disse que desenvolve sua inteligência emocional fazendo Origami, Reiki e Cromoterapia.  Um cara altamente lógico-racional cuidando das coisas e emocionais, um luxo!  Pensei, esse ser é especial.
Pra fechar, disse que veio lendo um livro no voo, de  Jung. Ahh... ele é dos meus.

Aí ele conta que tem filhas, esposa e uma cadela, e que tem que desenvolver o lado emocional pra lidar com tanta mulher. rsrsrs

Todos se encantam com Reinaldo. Sabedoria e humildade juntos, numa amálgama perfeita. 

Perto de ir embora ele revela que sua cachorra adoeceu de velhice. Ela tem 14 anos e ficou cega, recentemente.

Mas que ela andava pela casa toda, pois aprendeu ainda quando via a se livrar dos obstáculos.

Seu canto predileto era debaixo da mesa de refeições,  Ela vinha andando e sabia exatamente onde tava os pés da mesa pra se desviar.

Aí, um dia sua esposa põe algo muito quente em cima do tampo de vidro e quebra a mesa. 

Reinaldo começa uma busca em vão, de achar uma mesa que tenha os mesmos espaçamentos das pernas, para que a cachorra possa vir até eles sem bater nos pés.

Quem pensaria neste detalhes? Só pessoas-anjo.
Procura, procura e nada. Então decide que não haverá mais mesa. 

Sua esposa reclama, fala que as visitas irão sair falando, e coisas e tal.

Ele diz que as visitas do seu lar são visitas que saberão entender o porquê de não ter mesa. E que, logo logo, a cadela partirá.

Não vai complicar a mobilidade da sua amiga cadela, com uma nova mesa, para a qual ela não saiba os espaçamentos necessários. E fique batendo nos seus pés.

Ele fala com um desapego e amor que nos deixou perplexos, positivamente perplexos.

Que deixaria de comprar um móvel para melhorar a mobilidade de um ente querido?

Ou, quem ainda hoje faz gestos concretos para aumentar qualidade de vida dos que habitam em nosso lar? Numa sociedade apressada e descuidada com o outro.
Lembro da forma como muitas domésticas são tratadas, e as minúsculas áreas a elas destinadas, menores do que casinhas de cachorro. 

Ou quanto idosos habitam em nosso lar e não recebem o respeito e atenção que Reinaldo teve para com sua cadela. Vivem batendo nos pés da mesa de nossos lares e não fazemos nada para ajudá-los.  
Quanto amor o Reinaldo tem por sua cadela!
Quem ama, transforma realidades. Supera desafios, inventa possibilidades, e vai, faz e acontece. 

Como é bom ter alguém que cuide de nós, que veja nossas necessidades e seja solidário a elas.

Aquela foi a cereja do bolo da auditoria. 

Agora não era mais um sisudo auditor. 

Era uma pessoa de carne e osso, daquelas que quando se apaixonam movem montanhas para fazer o bem àqueles que ama.

Felizarda família do Reinaldo. Se ele tem esse tipo de preocupação e desapego, para melhorar a qualidade de vida de sua cadela, imagine de suas filhas, esposa e, porque não dizer, família e amigos.

Hoje li que a jovem  Mikhaila Copello, 22 anos, sozinha evitou que um ladrão fosse linchado na zona oeste do RJ.  " Pode-se falar de instinto, mas eu levantei. Fui até o sujeito, separei a briga, aos berros, enquanto uma multidão se reunia aos gritos de “mata! mata!”, Pra eles falei: Quem defende essas pessoas não é defensor de bandido ou de monstros, mas está dando uma chance a vocês de não se tornarem um monstro como eles."

O mundo seria muito melhor se tivéssemos mais Reinaldos e Mikhailas... ahh como seria!

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