Aposentadoria - Síndrome de Abstinência à Vida Corporativa (Ricardo de Faria Barros)




Querido leitor, convido-lhe a continuar refletindo sobre os obstáculos que existem na Travessia para o pós-carreira. Minha intenção é que você os contornem. Saia fora deles. Conhecê-los é preciso para não ficar exposto a este risco. É como saber que, numa determinada estrada, a ponte está interrompida. Assim, quilômetros antes, vamos procurando atalhos. Ou, como quem acessa o aplicativo Waze e vê que tem uma rota difícil à frente a tempo de procurar rotas alternativas e melhores. Hoje, refletiremos sobre o obstáculo da Síndrome da Abstinência à Vida Corporativa – SAVC. Num cartão plástico, de uns 5x9cm, quanta história reunida! Como numa tela, nele projetam-se anos de vida corporativa. Alegrias, tristezas, vitórias, derrotas, frustrações, conquistas... tudo ali se materializa. É a última peça do fardamento. E a primeira tirada fora ao nos aposentarmos. Em alguns, o crachá já se tornou parte do corpo, tão indissociável dele como o celular. São guardados como relíquias, a cada troca periódica. Noutros, a foto não mais representa o estado atual de quem o usa. Mas, ao olhá-la, ainda se veem do mesmo jeito. Entende? Naquele palco de 45cm² quantas peças foram apresentadas! Algumas dramáticas, outras cheias de humor, outras de amor, outras de terror, noutras, ainda, verdadeiras aventuras e sagas. Ele tangibiliza a participação na vida corporativa, abre portas, apresenta, cria similaridades e orgulho de quem o porta. Coloca todos na mesma página institucional, no mesmo grupo social. Seria, numa analogia possível, quase como uma "certidão de nascimento" do profissional. Ano a ano, trabalho a trabalho, ele foi tornando-se pessoa, e a pessoa tornando-se ele, numa amálgama de sentidos. Virou parte da identidade pessoal. O crachá. Ah, o crachá. Despedir-se dele - o crachá - é só mais um dos lutos necessários que o processo de aposentadoria pede. Naquele pedacinho de plástico quanta recordação! O que seria do personagem Bozó sem o crachá da Rede Globo? Comecei esse texto pelo crachá e o apego imaterial a ele para falar da Síndrome da Abstinência à Vida Corporativa - SAVC. Debulho umas letrinhas sobre a terceira Síndrome que criei para, pedagogicamente, educar para a aposentadoria. São elas: a Síndrome da Alienação Fantástica; a da Abstinência à Vida Corporativa e a do Ninho Vazio. Já escrevi sobre a primeira, vamos à segunda. Muitos aposentados que me procuram vivem a Síndrome da Abstinência à Vida Corporativa e não sabem. Ela é gerada pelo intenso processo de luto em que se encontram. Luto??? Mas como luto? O processo de aposentadoria acarreta uma das mais significativas vivências de perda do ser humano: do grupo de referência; da identidade social; dos processos, padrões de comportamento e disciplinas diárias; dos desafios enfrentados com o uso das competências adquiridas; dos estímulos recebidos, diretos ou indiretos, pelo alcance dos resultados. Não se engane! Até de trabalhos desprazeirosos, realizados ao longo de décadas, ao nos separamos deles, sentimos. É como aquela relação a dois, aos trancos e barrancos, que, quando um morre (o vilão, se é que existe um único vilão numa relação a dois) o outro sofre. E endoida o psicólogo que o atende. Vem à tona uma mistura de pulsões de vida e de morte, de eros e tânatos fazendo girar a dinâmica da vida e a nooexistência. E é justamente esse giro que torna a vida plena de sentido. Contudo, nem todos sabem cruzar essa fronteira, substituindo essas perdas por novas fontes de motivação. Pela despreparação com a qual adentram na aposentadoria, separam-se da "amante" sem uma etapa de transição. A Síndrome assemelha-se a duas outras patologias, a codependência afetiva e a abstinência. Na primeira delas, as causas são originárias de um apego excessivo, ou seja, fruto de uma vida centrada no objeto amoroso. É assim descrita: "O codependente acredita que sua felicidade depende da pessoa que tenta ajudar, e assim se torna dependente dele emocionalmente." No caso, troque o termo "a pessoa' por Corporação. Ou seja, transfere-se para a relação do trabalho toda a carga libidinal-afetiva, tal qual uma relação afetiva doentia. E quando é chegada a hora da separação do emprego, o codependente laboral entra em parafuso. Os mesmos sintomas de quem vive processos de separação de amantes, de forma abrupta, acomete as pessoas que não possuem outro prazer na vida, algo que lhe mobilize e lhe dê um porquê viver, além do trabalho. Toda relação de codependência gera, na separação, um profundo luto. Na bibliografia é chamada de Separação dos Amantes: A pessoa atingida pelo término da relação entra num estado de confusão emocional muito próprio de quem está perdido, sem bússola ou porto onde ancorar. Ante o sofrimento vivido, a trabalhador que se aposenta, não vê a empresa que dela saiu em sua real dimensão, mas a mantém mitificada no pedestal amoroso que criou. São sintomas da ordem da despersonalização, raiva, sentimento de incapacidade para tocar novos projetos, apatia, dificuldade de olhar à frente e de virar a página. Fica-se num saudoso e mórbido reviver das experiências do trabalho sem conseguir ver a vida que existe a ser desbravada no pós-carreira. A outra patologia é a Abstinência. Vejamos sua definição: "A Síndrome da Abstinência corresponde aos sintomas físicos, psicológicos e sociais provocados pela falta da droga, que ocorrem de 3 a 10 dias após o último uso.” (Wikipédia) Na metáfora que estamos discutindo, troque o termo droga por trabalho. A pessoa adoece por ter se acostumado com as endorfinas, adrenalinas e cortisol presentes na relação com o trabalho. Ao tirar delas o ritmo frenético em que estavam acostumadas, e por não haver substituições de outras atividades que produzam os mesmos hormônios, o aposentado definha em saúde física, mental e social, com sintomas de confusão mental, apatia, alteração no sono e libido, irritabilidade e depressão de leve à moderada. Mas, não é pra menos. O mundo do trabalho invadiu a vida pessoal. Ninguém mais trabalha 8 horas por dia. Quando se estuda à noite, após a jornada, está se trabalhando, entende? Ao sair para um happy-hour, após o trabalho, para se divertir com o grupo de referência a ele associado, estamos trabalhando, mesmo no lazer, entende? É que a referência do grupo social desse tipo de lazer é vinculada à instituição laboral. Ao se tomar banho para dirigir-se ao trabalho já se está trabalhando, entende? Ao chegar ao trabalho, parar na copa, tomar um cafezinho, saudar os colegas, já se está trabalhando. Ao chegar em casa, e ler as mensagens do seu grupo de “zapzap”, ainda se está trabalhando, mesmo que seja conversando amenidades. Entende? Se não tiver cuidado leva-se o trabalho para todas as vivências. O trabalho invade todas as áreas da vida e se não for feita uma preparação psicológica para o "desmame", para o "divórcio", a pessoa poderá reagir mal às perdas decorrentes do fim da relação de emprego. Trata-se do contrato psicológico do trabalho que acaba perpassando todas as áreas da vida do trabalhador, após 30- 40 anos de trabalho. Aí, ele não se prepara para a separação. Não alimenta, enquanto "casado" novos grupos sociais, novos projetos. Deixar para pensar nisso depois que se aposentar não é uma boa ideia. Depois será bem mais difícil. A ausência de ocupação e rotinas, associadas ao trabalho, vai deixar um vácuo na psiquê. Vai aprofundar o processo de luto. A Síndrome é cruel. Alguns de seus doentes ligam do telefone fixo para o celular, uma vez que ele calou. Ligam para ver se ele está funcionando mesmo. Outros, como o relato real do início do texto, pedem acesso à intranet corporativa como aposentados: "para poder acompanhar as notícias da empresa". Outros se arrumam, fazem a barba, e vão aos locais de trabalho na tentativa de rever amigos. Uns mais radicais passam a monitorar o trabalho pelas redes sociais para "não perderem contato". Todos, de maior grau ou menor, sofrem os sintomas da SAVC. São pessoas que sofrem a crise da separação. Da separação dos amantes. Pessoas que se deixaram despersonalizarem pelo trabalho. Perderam todas as outras referências de mundo deslocando sua libido e força vital unicamente para a Corporação. Trocaram sua identidade pessoal pela identidade profissional, pelo crachá. Contam aos familiares e amigos as cenas do trabalho, repetidas vezes, como se tivessem acontecido ontem. Refugiam-se nas memórias para manter acesso vínculo. Até tentam se agrupar em grupos de aposentados para manterem a relação acesa. Adoeceram pela pior das doenças que pode acometer quem ama: a codependência afetiva, a doença do apego. Não sabem mais viver sem a amada Corporação. O que fazer? Como se preparar para mitigar os riscos de adoecimento pela doença do apego? A resposta é simples! Eu disse simples, não fácil. Desperte outros motivos para viver. Comece uns anos antes da decisão de romper a se envolver com coisas que preencham o tempo e lhe deem prazer. Comece a se preparar psicologicamente para a separação, vivendo ainda juntos, entende? Comece a fazer as malas, lentamente, para uma nova jornada, uma travessia, agora em busca de si mesmo. Na outra margem da travessia existem tantas possibilidades para serem vividas. Aos que não sabem viver sem a rotina e estímulos que recebe no trabalho, digo-lhes que há vida além dos 45cm² do crachá. Há aventuras a serem vividas, conhecimentos a serem adquiridos, experiências a serem desbravadas. Processe o luto da sua amada corporação. Não significa ter indiferença com a empresa que dedicou bons anos de seu viver. Significa que os melhores ainda estarão por vir. É só se permitir o renascimento de sua pessoa, de sua nova identidade, não mais vinculada ao seu nome, o sobrenome corporativo.

Deixe de saudosismo.

Levante-se desta rede, cadeira de balanço, ou o que quer que se assemelhe. Há muita vida a ser desbravada ainda.

Há empregos sobrando na empresa VIDA S/A.

Portanto, participe de seus processos seletivos.

Faça a barba ou passe batom, mas cuide-se! Saia da posição de "aposentado desleixado".

Vá viver os bons anos da vida que ainda tem de forma plena, abrindo-se a inúmeras outras formas de ser feliz e de preencher o tempo com qualidade, agora escolhendo por si mesmo em que investirá as preciosas horas de vida plena, de sua bela maturidade.

Você tem mais uns 40 anos de vida ativa. Tome mais sorvete e menos sopa. Tome mais banho de chuva e menos de chuveiro.

Tome mais chá e menos tarja preta.

Tome mais doses de gratidão, doação e compaixão e menos doses de você mesmo. Existem muitas pessoas para as quais você pode ser bênção.

Pense nisso, os ecos do que fará com a sua vida, a partir de agora, ecoarão na eternidade dos que de ti se fizerem morada.
Tu és eterno demais para pendurar as chuteiras no jogo da vida.

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