Carta ao JG - Cuidado com os Modelos Mentais para a Sobrevivência.


Sabe meu filho nós gostamos de programas de sobrevivência na selva. Somos aficcionados pelo filme Largados e Pelados (L&P) e por aquele outro filme, o Ilhados, com Bear Grvlls.
Na minha infância eu também gostava de ler sobre aventuras, deliciava-me com os 12 trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato e outras de suas obras.
Nesses últimos dias, assistimos à cenas que merecem um registro. No L & P um casal: Billy Berger e Furneaux ficam por 21 dias tentando sobreviver nos pântanos da Louisiana. Enfrentam cobras, inundações e grandes aligátores.
Algumas situações muito nos chamaram a atenção. Numa delas, eles estão com muita fome e de olho nuns crustáceos que ficam na superfície da água, uma espécie de lagostim, e que não entram nas armadilhas que eles colocam.
Na rotina de frustração que essa observação impotente causa, eles verificam que umas aves são exímias caçadoras de lagostins, alguma delas bem próximo de seus pés.
O casal olha os pássaros caçando e continuam tristes e desesperançosos, e com fome.
Noutra cena a mulher se desespera com o som das rãs e sapos que não a deixam dormir.
Durante a manhã eles entram na água e desesperados tentam caçar, a pauladas, cobras de água chamadas de Bocas de Algodão.
Tanta pererecas ali facinhas e eles aventuram-se procurando caçar as cobras no sentido gastronômico da finalidade. rsrs.
Perguntei-lhe: Mas JG seria tão mais fácil abater as aves, ali pertinho deles, depená-las e comê-las. Você me disse: Mas pai, eles não estão vendo as aves, pois estão querendo é os camarões.
Depois vem um chuvarão. Tudo enche de água. Eles ficam com os pés na água. E tem a idéia de construírem um platô, de um metro por um metro, com lama e resto de folhas e galhos, para em cima dele fazerem uma fogueira. Eles fazem a fogueira, mas continuam com os pés na água e sem lugar para descansarem, já que está tudo cheio de água.
Uns dias se passam, eles esfomeados, com os pés em carne viva pelo longo tempo dentro da água, enfim decidem procurar terras altas.
JG coisas nos chamaram a atenção.
Por que não foram procurar logo um lugar mais alto, após a inundação?
Por que não caçaram as rãs para se alimentarem, ou os pássaros?
Dias depois, vimos o filme Ilhados. Era um grupo de umas 10 pessoas, numa ilha paradisíaca, e que ali foram deixados com reservas para apenas dois dias de água e com pouca comida.
Eles acham uma pequena reserva natural de água, mas está fedida e parada. Imprópria para o consumo, caso não fervida.
E passam um bom tempo tentando fazerem fogo, com a fricção de uma madeira sobre a outra. Outros, vão tomar banho de mar.
E as reservas de caloria vão caindo, e o fogo nada, e a sede aumentando. Um deles, que tenta acionar o fogo usa óculos. Fiquei me perguntando, porque não usou os óculos como lente e fez o fogo da projeção do feixe de sol sob ela e numa palha?
Uns desistem de ajudar o coletivo, entregam-se ao limite da situação e travam, e ficam “bronzeando-se” embaixo de sobra de manguezais. Fiquei nos perguntando: por que não saíram caminhando pela ilha, tentando identificar se não havia algum rio que nela desaguasse, ou outras fontes de águas mais límpidas?
Bem, resumindo, lá pelas tantas eles conseguem finalmente fazer fogo e ferverem a água, purificando-a para o consumo. Mas agora é a fome.
Chama atenção os coqueirais, alguns dos quais eles tiraram folhas para fazerem rústicas tendas. Nem um deles pensou em se alimentar dos cocos, ou o mais lógico ainda, tirar água deles para matarem sua sede. E que água boa seria.
Filho meu, a esse fenômeno que aconteceu em ambos os filmes, que impossibilitou deles verem alternativas chama-se de desamparo aprendido.
O desamparo aprendido foi identificado em 1965, pelo psicólogo Martin Seligman, da Universidade da Pensilvânia. Seligman fez o seguinte: separou os cães em dois grupos. Um dos grupos foi colocado em uma jaula na qual o chão estava conectado a uma corrente elétrica, que disparava de tempos em tempos pequenos choques, incômodos, mas de baixa intensidade. O outro grupo foi colocado em uma jaula idêntica, porém, havia um dispositivo aonde eles conseguiam desligar o sistema que provocava os choques facilmente. Assim, o segundo grupo podia desligar os choques, enquanto o primeiro grupo tinha que se acostumar com o incômodo. Após um período inicial em que os cães ficaram acostumados às suas jaulas, Seligman mudou-os de ambiente, colocando-os em jaulas, com o mesmo sistema de choques, mas com uma barreira muito baixa, que qualquer um dos animais podia pular sem dificuldade. Enquanto o primeiro grupo – que não podia controlar os choques – simplesmente não saiu da jaula, o segundo grupo – que conseguia desligar os choques – agiu naturalmente e pulou a barreira para se livrar do incômodo.
Ou seja, o primeiro grupo aprendeu que não podia fazer nada e se acostumou tanto com aquela situação que, quando foi transportado para outro local, com o mesmo incômodo, e já havia uma solução, a solução não era mais buscada.
Consegue entender meu filho a analogia com os filmes de sobrevivência?
Quando focamos nos problemas, só vemos problemas.
Quando botamos na cabeça que alguém é ruim, não presta, só veremos isso à nossa frente.
Quando ficamos cegos por ódio, vingança, inveja, não haverá espaço em nossos corações para contemplar outras coisas bacanas pelas quais viver. Estaremos envenenados de negatividade.
Quando ficamos excessivamente críticos de tudo, perdemos o foco nas sobras, no que ainda tá legal, no que dá pra fazer, apesar da situação, ficando remoendo a água molhando nossos pés, trazendo a cena do filme, no lugar de partir para terras mais altas.
Alguns de nós, quando estamos sofrendo intensos processos de estresse entramos no modo “Desamparo Aprendido” e não conseguimos reagir, trazendo para a reação o pessimismo diante da situação limite em que nos encontramos:
- Para que olhar para as aves como opção de comida, se o que quero mesmo são os crustáceos?
- Para que procurar outras fontes de água não poluídas, se o que quero mesmo é poder descontaminar essa que achei com o fogo, mesmo correndo um alto risco de não conseguir faze-lo?
O desamparo aprendido nos imobiliza, nos incapacita de ver outras possibilidades presentes também na situação.
Ele modela nossos sistemas de resposta emocional, físico e até social às restrições, limites e medo.
Assim sendo, ele gera um tipo de aprendizado, o do desamparo.
Nele, revive-se, comporta-se nas cenas atuais, com os mesmos comportamentos do passado, sem atualizar a existência, afinal mudaram-se as estações, os atores, o cenário e até o enredo. Mas, o drama continua o mesmo.
Percebe filho meu o perigo? O perigo de limitar nossa existência e não atualizar nossas experiências permitindo-nos novos aprendizados, e até olhares sobre alternativas.
Fica-se refém de um modelo mental doentio: “tenho que comer o camarão”. E perde-se a oportunidade de caçar a ave que á sua frente come o camarão, e dela alimentar-se.
Não é o que nos limita o que nos aprisiona. É o que acreditamos, ou não acreditamos, o que de fato constrói nossas prisões interiores. O que de fato modela nossa plasticidade cerebral.
A boa notícia, filho meu, é que podemos desaprender o desamparo.
Podemos descondicionar nossa existência, ao desenvolver potenciais que nem nós sabíamos que um dia seríamos capazes.
Usando a metáfora dos filmes: podemos sair do alagadiço e procurar lugares mais altos, não nos acostumando com aquilo que nos faz infelizes, e mudar.
Mudar dói, mas é necessário a uma vida com sentido.
Podemos também aprender a olhar para a vida de uma forma mais expandida, enxergando possibilidades nas beiradas de nossa existência.
Quando seu foco é apenas na fome, tudo vira comida. Pense nisso.
Cuidado onde bota o foco. Nossas crenças alteram o processamento da realidade, que por sua vez condicionam comportamentos frente a elas, que por sua vez reforçam as crenças.
Quando são positivos, esses hábitos são ótimos, ajudam-nos a uma vida plena e a poupar energia emocional.
Quando são negativos os resultados desses fluxos causam muito sofrimento, são hábitos apreendidos e aprendidos de desamparo e que causam muita infelicidade.
Então, filho amado, podemos desafiar-nos a andar um pouco mais, à procura de fontes de fontes limpas, movendo-nos com esperança em busca de novos sonhos e objetivos mais nobres.
Não nos acostumando a passar o resto da vida fervendo as águas podres, para consumi-las em nosso viver.

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