Reconheça


Cheguei ao setor e ela estava limpando o chão da área em que trabalho.
Uma sensação gostosa me invadiu e lhe agradeci o esmero.
Envolvi-me absorto na validação do ponto de minha equipe do dia anterior, trata-se de providência primeira no meu trabalho.
O cheirinho de coisa limpa vai inebriando os sentidos e me dando vitalidade.
Eis que passa a supervisora de serviço e comenta com a faxineira, do corredor pra fora, sem me ver: “Ivaneide, você está de parabéns, seu serviço é ótimo”.
Comentou e saiu apressada, como apressados são os supervisores.
Notei que a luminosidade aumentou no meu setor. Não, não era a de um lampião que tenho na mesa.
A luz adicional vinha de seu rosto. Quanta felicidade e esplendor, mal disfarçado entre uma esfregada e outra.
Ela continuou a limpar o chão, mas agora estava toda garbosa, peito estudado, toda cheia de dignidade.
Não me contive e comentei: puxa que legal o que você escutou.
Ela parou, olhou-me e  disse: “não esperava... Fiquei até sem jeito”.
Nisso chegam as outras meninas, que tinham ido ao banheiro e eu faço a onda com todas.
Uma delas diz: “Oxente, mas nós também estávamos esfregando o chão por aqui. E é a bonitona que leva a fama sozinha, só porque estávamos no banheiro?”.
Lucineide e Silene falavam brincando, sem inveja, sem mágoa. Elas sabiam que o elogio era para as três.
Estavam tirando onda, aproveitando-se de que a Ivaneide aparenta ser a mais recatada e tímida.
Penso, que leseira numa hora rara de agradecimento – nada comum nas organizações do trabalho, elas estarem no banheiro e perderem o momento. É azar. rsrs
Mas elas ficaram nunca alegria só, pelo reconhecimento a sua amiga, que como estão juntas e formam um time, sentiram que a alegria pelo agradecimento agora pertencia a todos, após eu ter revelado o que a Ivaneide silenciara ao receber. Agora era para todas.
Até pedi para que posassem para uma foto de celular. E, mais uma vez reconheci também a qualidade da limpeza.
Logo descobri que elas são da Paraíba (Ivaneide), Bahia (Lucineide) e do Ceará (Silene).
Aí trocamos uns dedinhos de prosa, prosa das boas, de gente que encontra entre si cumplicidades.
A supervisora chama-se Eva, e sei que naquela manhã ela mudou um pouquinho, e para melhor, o dia daquelas mulheres naquela manhã.
Ela iluminou vidas, fez da Ivaneide a mais formosa das faxineiras, afinal era ela quem tinha recebido o elogio: elogio sincero, sem segundas intenções, não mascarado ou dramatizado.
Nessa manhã, lembrei-me de uma de minhas aulas, nas quais utilizo um resumo do livro do Stephen P. Robbins: A verdade sobre gerenciar pessoas... E nada mais que a verdade.
Uma das verdades que Robbins pesquisou e apresenta nessa singular obra é a de que o reconhecimento mais expressivo, desejado, cobiçado, sonhado e valorizado pelos trabalhadores é o agradecimento pessoal: de seu gestor por um trabalho realizado, com a qualidade e resultados para além do esperado.
Robbins pesquisou 2.000 trabalhadores, representantes das culturas organizacionais e lugares mais diversos do planeta. E, só encontrou um grupo de 48% de trabalhadores que afirmaram se lembrarem de apenas de terem recebido um elogio pelo seu trabalho, no último ano. Os demais 52% não se lembraram de terem recebido qualquer tipo de elogio, agradecimento ou reconhecimento pessoal de seus gestores pelo trabalho executado.
Não estranho, nem a reação efusiva das faxineiras, nem os achados da pesquisa de Robbins.
Afinal, a gratidão anda em falta desde os tempos bíblicos. Sem puxar sardinha para espiritualidade, mas só a título de evidenciação do conceito, veja o contido no Evangelho de Lucas 17,17-18:
17 Jesus perguntou: "Não foram purificados todos os dez? Onde estão os outros nove? 18 Não se achou nenhum que voltasse e desse louvor a Deus, a não ser este estrangeiro?"
O reconhecimento não deveria ser um rito, não deveria ser uma safra, um momento do ano.
Deveria fazer parte de uma agenda diária, natural, sem dramas, sem preparações especiais.
Assim como a gratidão, que não deveria ser expressa só quando falece aquele para o qual somos gratos, por exemplo.
O reconhecimento e a gratidão deveriam ser uma postura de vida. Uma atitude cotidiana, sempre que algo que nos foi entregue, ou conosco aconteceu, tornou a nossa vida melhor, mais fácil, plena e feliz.
Reconhecemos o café gostoso que a copeira fez?
Reconhecemos aqueles que nos ajudaram a chegarmos até onde já chegamos?
Reconhecemos, com agradecimentos pessoais, o comprometimento de nossos colaboradores, a entrega de valor pelo resultado de seu trabalho?
Escuto de muitos gestores que eles temem banalizar o reconhecimento: "e que os guardam para momentos mais importantes".
Ou que, “não fizeram mais do que a obrigação”.
É como se eles tivessem medo de gastar a prática. Ou parecerem falsos. Ou, pior ainda, darem liberdade e moral ao grupo, perdendo o pulso.
Quanto engano! Quanto medo bobo e desconexo com os anseios dos trabalhadores.
Quem não gosta de agradecimentos? Quem não gosta de se sentir no caminho certo, valorizado e percebido como tal?
Quem não comenta em casa quando recebe um elogio, ou até posta em redes sociais? Tal o impacto dele no resto de nosso dia, iluminando-o?
Um agradecimento reforça comportamentos bacanas, incentiva novos reconheceres, anima e fortalece a jornada.
É catalisador da motivação, atuando nos recônditos mais íntimos de nossa psique, produzindo endorfinas – hormônios do prazer.
A gratidão pavimenta a estrada da coletividade, possibilitando a abertura para o outro, e o reconhecimento dele como importante ao meu viver. Praticar a gratidão atua como um antidoto ao egoísmo, ao individualismo e ao narcisismo.
Faz-nos tirar o centro de nós mesmos, deslocando-o ao outro – o sujeito do agradecimento.
Faz-nos sentir sermos parte de algo maior, intenso e pleno de eternidades, faz-nos humildes.
É amigos, quem agradece eterniza o outro, por um breve instante, tocando no seu amor próprio e autoestima, fecundando-os.
Escuto de meus alunos o quanto é difícil serem valorizados e percebidos, no mercado de trabalho em que atuam – muitos de grandes empresas. E o quanto não escutam elogios ou agradecimentos: só cobranças, puxões de orelha e reprimendas – de todos, e dos mais criativos tipos – velados ou nada velados.
A situação fica mais complexa ainda com as diferentes expectativas geracionais, no ambiente de trabalho, daquele grupo com até 30 anos, que espera mais feedback, orientação e retorno sobre seu trabalho, como elementos catalisadores de seu crescimento.
Eles precisam de estimulação quase diária e acabam fenecendo e perdendo o vigor, por não se sentirem no caminho correto, por não receberem reforços positivos e verdadeiros de seus líderes. Só se foca no que lhes falta. Só se destaca o que fizeram de errado.
Lembro-me de que até nas estratégias de prevenção à depressão, a gratidão vem sendo prescrita. Uma das técnicas mais consagradas da psicologia positiva recomenda que antes de deitar façamos um diário de gratidão, anotando nele três coisas que ocorreram em nosso dia para as quais fomos gratos, e o que em nós provocaram de sentimentos. Coisas da dimensão do bom, belo ou virtuoso, acontecidas conosco, na realidade, com os outros ou que testemunhamos.
Corramos e sejamos gratos. Agradecer é verbo que se faz no presente. É ação que muda pessoas e histórias. Que possamos conjugá-lo todos os dias e em lições práticas.
Não precisa ser gerente para isso. Todos podem reaprender a conjugar o verbo agradecer. Agradecer aos nossos pais, filhos, amigos, afetos, colegas que dividem o espaço de trabalho, vizinhos, e pessoas mais humildes que nos prestam serviços. Agradecer estar vivo, agradecer o sol, a chuva, as flores, o leito no qual repousamos. Agradecer o trabalho e a maravilha de se renovar a cada dia. Agradecer coisas prosaicas e cotidianas, como o almoço nosso de cada dia. Sê grato!
Meu diário já tem duas para hoje à noite. A felicidade que testemunhei da Ivaneide e amigas e o agradecimento da sua supervisora que ouvi e embeveceu meu coração.
Agora vou fazer a terceira e completar minha meta diária de captação, ou percepção, do bom, belo ou virtuoso: vou ali ao outro setor agradecer à Débora que me presenteou com uma reflexão do filósofo André Comte, deixando-a impressa na minha mesa.
“É impolido dar-se ares de importância. É ridículo levar-se a sério. Não ter humor é não ter humildade é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é ser demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase sempre carecer, com isso, da generosidade, de doçura, de misericórdia... O excesso de seriedade, mesmo na virtude, tem algo de suspeito e inquietante: deve haver alguma ilusão ou algum fanatismo nisso...”. A. Comte.
A reação das amigas da Ivaneide foi o próprio Comte. Mais uma sabedoria das meninas. Ponto adicional para elas, e para Eva, que continue assim.

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