Confesso que Morri, ops, Corri.


As nuvens dissipavam-se lentamente naquela manhã de despedida de agosto.
Atrás dos morros o sol começava a nascer. Do banheiro, eu contemplava mais uma vez aquela cena idílica. Comecei a tirar o pijama, na verdade meu calção, balofo como o dono, e senti uma fisgada na coxa. Algo anormal estava acontecendo. Os músculos estavam revoltados, o menor movimento era difícil. Estava todo entrevado.
Descer a roupa foi até fácil, ruim mesmo foi me ensaboar e colocar o terno.
Doía tudo.
No dia anterior, participara de uma corrida de rua, organizada pela Diretoria de Tecnologia do BB, da sua V Miniolimpíada.
No domingo, “corri” uns cinco quilômetros. E cheguei em casa sem dor alguma. Tava bacana. Foi só o músculo dormir, para amanhecer de mau humor na segunda.
Para quem foi atleta de natação na juventude, agora eu me incluo no grupo dos sedentários inveterados.
Daqueles que os filhos o presenteiam com um par de tênis de corrida, pois o pai só tinha alparcatas, mocassins, sandálias e alguns sapatos no armário.
Nada de tênis.
Pois bem, o domingo era de desafio.
Mas estava tranquilo, afinal o que seria correr 4.200 metros? Nem cinco quilômetros eram.
Via na televisão pessoas correndo mais de 42.000 metros e chegando inteiras. Até posando para fotos.
Mole, mole.
Botei duas bananas na bolsa de couro, recomendação do filho mais velho, e segui confiante.
Peguei meu chapéu de coco, aquele do Ceará, e protegi o telhado.
No caminho, parei para deitar um pouco num gramado, embaixo de plumas de uma paineira que se entregava toda, branquinho, branquinho .
Não estava com pressa.
Mesmo assim, cheguei uma hora antes, no primeiro minuto da abertura do credenciamento.
Gosto de horários e sempre me antecipo a eles com medo de me atrasar.
Chegando ao local vi umas mocinhas numa mesa, pensei, deve ser o tal do credenciamento.
Peguei a CNH e paguei o primeiro mico, não precisava entregar documento.
Ela procurou meu nome na listagem e me deu um envelope pardo.
Para ela eu deveria ser um "profissa", daqueles C de ferro que chegam cedo para irem se concentrando.
E agora, eu faria o que?
Usei a estratégia mais antiga de aprendizagem. Fiquei olhando os outros. Vi que eles tiravam a papeleta com o número, o meu 481, e a fixavam com uns alfinetes de pressão.
Levei um tempo até pegar o jeito e afixar os quatro grampos. Sou esquerdo e esquerdos sofrem com tudo que precise de destreza manual.
Pronto, agora estava identificado. Senti-me o cara. Aos poucos o local ficou cheio de gente bonita, sarada e tudo com ginga de atleta.
Lembrei-me do que meu filho falou: "coma a banana meia hora antes.”.
E me senti superior por aquela banana. Tinha muitas trazidas pela organização, mas estavam fechadas num gradil, eu pensei, deve ser pra o final a prova. O pessoal olhava aquelas bananas e maçãs, isoladas por uma grade, e babava. E eu estava de boa. Despertando salivas em todos.
Eu abri a minha, descascando-a lentamente. Era um troféu, um segredo vital para o sucesso da corrida. Meu tônico secreto. Comi-a bem devagarinho, fazendo inveja.
Ganhei deles no item banana prévia. Planejamento é tudo. rsrs
Perto da largada, fui comer a outra e percebi que eu tinha batido com a bolsa no chão e a banana amassara toda. Na bolsa, salvei o celular e a carteira, todos melecados com resto de banana espremida. Deve ter sido praga dos concorrentes esfomeados que secaram minha primeira banana.
Ainda salvei um terço dela, e o resto fui limpar no banheiro. Eca. Só comigo.
Começou o aquecimento. Fiquei tirando foto, aquilo era para os fracos, pensei. Ouvi um atleta comentando que o chip do outro estava no lugar errado.
Que chip?
Eita gota serena! Cadê meu chip? Como iria marcar meu tempo. Achei que ficavam anotando os números da plaqueta. E para que plaqueta se tem chip?
Tantas perguntas de um novato.
Disseram-me que no envelope tinha um chip. Pensei comigo, onde coloquei o envelope? Ah!, na bolsa melecada, corre Ricardim e busca o troço, lá onde deixamos os pertences pessoas, numa espécie de guarda-volumes.
Corri no lugar que deixei a bolsa, sim pessoal, desisti de correr com a bolsa e a câmera. Que era o objetivo inicial. Mas ouvi uns conselhos prévios e achei melhor relevar, o sol tava muito quente. E quando se andar com cem gramas, depois de um légua, vira um quilo, já tinha lido sobre isso.
Achei meu chip no meu envelope e pedi ajuda a uns amigos que me ensinaram a colocá-lo. Tudo era novo pra mim.
Aproveitei uns minutinho antes da largada e fiz um monte de fotos de um casal que corria com seus gêmeos, carregando uma cadeira de bebê - daquelas que têm duas rodas atrás e uma na frente. Achei uma gracinha e fiz várias fotos deles. Procurei um gordinho para disputar com ele, mas não achei, será que eu era o único?
Do alto dos céus, um Drone que documentava tudo, trazido pelos Balizas, insistia em filmar meu chapéu de couro: Filma "eu", Arnaldo!
Pensei comigo, melhor que filme antes.
E foi dado a largada. Cavalos alados passaram voando ao meu lado. Parecia um estouro de boiada. Mantive a pose e segui numa marcha moderada. Meu filho disse que eu sentiria o corpo querendo parar pelos 2 km, e que era só uma mentira físico-emocional.
Que eu deveria continuar a correr que logo passaria, seria dissipada como fumaça.
Segui então aguardando os sinais mentirosos da fadiga.
Com os bofes pra fora, passou uma moçoila e comentou: tá mal hein, Ricardim!
Pensei, ela sabe nada, é só a fadiga mentirosa. Logo passará.
Mas é chato ser conhecido numa hora dessa. Todos passam tirando onda. rsrs
Continuei a sentir uns troços ruins. Devia ser a tal fadiga emocional de que o filho falara.
Precisava resistir.
Chegando na primeira curva de retorno, para acessar a pela pista que vinha em sentido contrário, vi de longe a placa que marcava a quilometragem.
Forcei a vista, passei a mão no rosto, não acreditei no que lia.
Seria alucinação?
Tirei a remela dos olhos e estava ali: 1 KM. Pensei, vocês estão de sacanagem comigo, só pode ser pegadinha. Ou será que faltam apenas 1 KM?
Não é possível que com todo esse esforço, com os bofes pra fora que estou, eu só tenha corrido 1 KM.
Então, a confusão foi dissipando e saquei que era uma cruel verdade. Afinal, se a corrida era de 4.2KM, não teria sentido só faltarem 1km, afinal a portaria da AABB estava ,estava logo ali atrás.
Fiz a rotatória seguindo com a vista o pelotão que disparava na minha frente.
Aí pude ver que outros vinham andando atrás de mim:
Mães e pães com seus lindos bebês tomando sol, outros nos carrinhos, outros de bicicleta de rodinhas e uns bebuns alegres.
Eles traziam um carrinho de picolé cheio de cervejas. Aqueles é que são os profissionais.
Eu estava a pouco metros desse pelotão de trás.
Então, resolvi andar um pouco. Meu filho disse que era bom, chama-se de corrida intercalada.
Coisa de profissional. Corre, anda, corre e anda.
Bem, se eu continuasse o ritmo ganharia ao menos dos carrinhos de bebês.
Vou arfando, agora vejo a marca de 2 KM.
Eis que passa por mim a mãe dos gêmeos – aqueles das fotos da concentração, empurrando toda garbosa a cadeira dupla com seus bebês..
Aquilo era uma miragem, seria alucinação?
Estava perdendo para aqueles três?
Tomei todo o fôlego do mundo e disparei até alcançá-los, ainda fiz onda passando ao lado: “bora, bora, bora.”
Avancei uns 100 metros, ganhando a dianteira, e parei novamente para caminhar. Na calçada, aquela providenciais fadas com água mineral. Peguei uma e tomei banho com a outra.
Que ducha divina!
Acho que estava tendo um treco. Muito cansado. Agora me recuperava com a água.
Nem bem tirei a água do cabelo, enxugando o rosto, e adivinha quem passa à minha frente?
O berço alado. E voavam mais baixo ainda. Ouvi mal, ou os nenês falaram: corre mamãe, passamos o tio "buchudo”.?
Acho que eu estava alucinando devia ser a tal fadiga físico-emocional que não passava.
Ou foi telepatia? Aquele moleques estavam muito sorridentes pra mim.
Pensei, preciso de objetivos. Vou recuperar a dianteira.
Não poderia perder para aqueles gêmeos, ainda mais com um drone que insistia em nos sobrevoar fazendo tomadas aéreas. Acho que ele acompanha a nossa disputa.
Disparo uns 200 metros e passo novamente, agora era manter o ritmo. Uma placa de 1 KM aparece.
Nunca agradeci tanto a Deus por aquela placa. Agora sim, faltavam 1.000 metros.
O que era um peido pra quem já estava cagado? 1.000 metros, seriam moleza.
Olhei lá para trás: a cadeira era uma miragem bem longe.
Então aqueles 1.000 metros não passavam. Uma eternidade.
Arfando, resolvi caminhar um poste e correr dois.
Eu e minhas marcações.
Logo em seguida, inverti, corria um poste e caminhava dois. Parei e vi o berço alado vindo em disparada, uns 200 metros atrás.
Uma mãe, do pelotão das mães, bebês, crianças e assemelhados, passa por mim correndo com seu filho, que aparentava uns 10 anos.
O moleque olha para mim com júbilo, todo orgulhoso. Pronto, fui a coisa boa daquele moleque. Ele passou o tio buchudo.
Bastante zureta, fui trotando lentamente.
Corri mais uns 50 metros, até que umas mocinhas passaram por mim e disseram: “Vamos lá Ricardim!”
Olhei de solslaio procurando o carrinho de picolé-cerveja, era tudo de que precisava agora.
Ele não estava lá,.
Deveria ter parado num sombra qualquer ou cortado o caminho.
“Ricardim, vai desistir agora é? Bora, bora, bora” Mais uns disseram-me.
Aquilo foi uma provocação. Lembrei de meu bora, bora, bora para as crianças do berço alado.
E continuei. Aproveitei a rampa de descida da AABB e soltei o último gás. Precisava chegar bonito, bacana, sarado. Imagem é tudo! Rsrs
As pernas batiam na bunda de tão rápidas. No embalo da descida, não tem fraco!
Vendo a linha de chegada senti que conseguiria ganhar do berço. Cruzei a marca, peguei uma banana, uma maçã, um copo de água e sentei na primeira grama que achei.
Olho para a linha de chegada e meus oponentes passam, não deu nem 30 segundos de minha chegada.
Logo depois vai chegando o pelotão de mães e pais e suas crias. O carrinho de picolé deve ter sido abduzido em algum lugar.
Fui nos gêmeos e declarei que eles tinham ganhado a corrida!
Foram os primeiros bebês que chegaram. Medalha de ouro para eles e seus pais.
Não disse que eu estava disputando com eles. rsrs
Aquilo era segredo.
Fiquei por ali, desacorçoado, sem saber o que o povo fazia depois que corria. Vi uns alongando-se, ou seria relaxando? Vi outros manuseando uns troços eletrônicos.
Vi uns comentando suas marcações ao celular e postando suas marcas, como heróis. Todos exultantes.
Não havia perdedores.
Eles corriam contra seus tempos anteriores. Essa era a brincadeira. Entendi agora.
Mas, qual era mesmo meu tempo anterior?
Não tinha, até então.
Agora terei. Vou pedir à organização o meu tempo nos 4.2KM?
Agora ele será uma marca, um alvo, que precisarei diminuir.
Não fiquei para a entrega das medalhas e encerramento. A fadiga físico-emocional agora pedia repouso. O coração estava galopante. Caminhei lentamente e sozinho ao carro. Pensei comigo, essa corrida foi um sinal de alerta. Não posso continuar sedentário. Nem sempre terei esse carrinho de bebê da vida me levando.
Hoje à noite vou desafiar esses músculos rebeldes e doloridos, desafiar o sofá, e voltar a praticar exercícios.
Valeu V Miniolimpíadas Ditec, vocês me fizeram um bem danado, e conseguiram alcançar o que anos de recomendações médicas não lograram êxito: a real necessidade de exercitar-me.
Afinal, corpo são, mente sã. Mente sã, corpo são. Foi muito bom ter participado. Foi muito bom ver que a vitória é uma meta para nós mesmos, não contra o outro.
Agora vou ali tomar um dorflex. E, à noite terá treino, não é hora ainda de pendurar o tênis da vida. E é preciso se cuidar para que ela seja de qualidade.
PS. Ao chegar em casa caminhei uns 600 metros e corri outros 200. Começando...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores