Cave mais um pouco em busca de seu melhor. By Ricardim
A
manhã acordou nebulosa, no horizonte fragmentos de queimadas turvavam a
vista, confundindo o horizonte com formação de nuvens das chuvas
serôdias, aquelas que chamamos: “do caju”. Mas, não eram nuvens de Deus,
eram as dos homens, fruto das queimadas no Cerrado.
Acordei na ponta dos pés, era sábado e a esposa e o JG dormiam na cama de casal, eu numa rede preguiçosa armada ao lado.
Fui na cozinha e preparei um delicioso cappuccino, aquele aroma ia desturvando meus pensamentos.
Uma revoada falante de Quero-quero acordou o dia, agora definitivamente, com sua melodia desengonçadamente estridente.
Deixei o JG e o seu amiguinho Gustavo no futebol e saí em busca de me recompor apreciando as belezuras da vida.
É que durante a semana perdi muita energia tipo esperança, ao acessar
alguns portais de notícias, ali vi coisas que me deixaram indignado:
jovens comentando sobre uma morte que provocaram, dizendo que a briga
tinha sido “tri-legal”. Um marido descrevendo como matou a esposa e a
enterrou no banheiro, como quem relatava um passeio dominical...
Aquela falta de culpa, arrependimento e qualquer tipo de compaixão me
deixou com nó nas tripas, durante a semana. Então, meu estoque de poesia
estava baixo. Precisamos de possibilidades para alterar o curso dos
pensamentos negativos, uma delas é nos levar para ver a poesia das
coisas.
Emancipando o olhar para o que ainda sobra, o que ainda se tem e daquilo poderá fazer ainda o bom, o belo e o virtuoso.
Então, saí à caça das possibilidades de encantamentos.
A primeira parada foi numa calçada de grama, repleta de florezinhas
violetas, como uma colcha de fuxico. Bela, bela. Respirei e agradeci ao
bom Deus aquela pérola coletada.
Perto da terceira ponte, aqui em
Brasília, alterei a rota. No lugar de ir fotografar as cagaitas, que
agora começam a desafiar o pó do cerrado e soltarem suas minúsculas
flores brancas, entre brotos de folhas carmins, fui caçar paineiras
rosas, em fim de safra.
Ah meus amigos, se vocês nunca viram um
campo coberto com as painas brancas, de textura e forma similar ao
algodão, não sabem o que estão perdendo.
As plumas vão sendo
lançadas de seus frutos, uma espécie de amêndoa grande, que ao
abrirem-se as lançam no horizonte, junto com minúsculas sementes.
Embaixo das paineiras, numa determinada época do ano, forma-se um tapete branco, de indescritível beleza.
Eu precisava daquele tapete. E queria fotografá-lo para vocês.
As de Cagaita, perto da Universidade dos Correios, que está em muda e
vestindo seu vestido de noiva, deixaria para depois. A Cagaita é a
cerejeira do Cerrado, já fiz loucuras por elas.
Demorei séculos e
movi montanhas para ter uma na minha calçada, aliás tenho também uma
paineira-rosa, bem rejeitada por síndicos, moradores e jardineiros, só
porque nos seus primeiros 15 anos ela tem espinhos nos troncos. Se
fossem nos rejeitar pelos espinhos que já tivemos ao longo de nosso
amadurecimento estávamos todos condenados à solidão.
Sabem nada!
Desviei em busca de meu recanto secreto de paineiras-rosa. Fica ali no
final do Lago Sul (Brasília-DF), uns 3 KM do acesso ao aeroporto.
Entrei na rota e fui vendo que a maioria delas já tinha perdido as
folhas e os frutos, estavam agora desnudas, prontas para mais um ciclo
da vida e do viver.
Chegara tarde. Será?
Quando já pensava em voltar, afinal precisaria pegar o JG em 30 min, visualizei ao longe um tapete branco.
Elas eram frondosas, e restavam muitas painas branquinhas. Foi uma alegria só.
Reestabeleceu-se o nível de esperança na hora. Apalpei aquele tecido sedoso, fofinho, e elevei meu coração às coisas do alto.
Apressadamente, voltei ao carro pois estava longe do futebol. Algo me
dizia para voltar por um atalho, que só usei umas 2 vezes, em 15 anos.
Trata-se de voltar pelas chácaras do lago, lá por cima, e encontrar com
a principal bem na frente, em direção ao Jardim Botânico.
Voltando
por ali, vou vendo aproximar de mim um imenso tapete branco, ainda
virgem, sem transeuntes pisando em cima, e aparentando terem sido
lançados por uma paineira grávida de bênçãos.
Brequei fortemente, procureio lugar para estacionar, não havia, deixe o carro parada na minha mão mesmo.
Era uma estradinha com pouco movimento, quem viesse desviaria para o outro lado, a causa era nobre.
O silêncio era magistral. Ali, eu, pássaros, beija-flores, abelhas e as plumas formávamos um elo com a eternidade.
Ainda vi os frutos se abrindo, alguns maduros caídos sobre o chão, e
deles saindo em voos inseguros algumas jovens plumas. O seu interior
era como um berço cheios de tecidos alvos e macios que protegiam as
sementes.
Tive vontade de me deitar naquele chão, e como diz o poeta, ouvir estrelas.
Amanhã farei. Preciso deitar num tapete de painas, num travesseiro de plumas que me aconcheguem. Ah! se vou, vocês saberão.
No caminho para pegar o JG, uma linda Cagaita me desafia. Desafia a
disputa de cronos versus kairós. Olho para o relógio, estou a 12 minutos
do fim do treino e há 8 km do local.
Esqueço a razão e paro para fotografá-la.
Elas desafiam a seca, o pó de barro, fumaça e poluição dessa época do
ano no Cerrado e abrem-se em flores angelicais, de uma beleza
estonteante.
Volto à realidade e ainda chego a tempo de pegar os
pênaltis. JG leva um gol, e faz outro, e volta para casa feliz com o 1 a
1.
Chegando em casa, o pedreiro me diz que a tubulação para a fossa nova deu problema.
Precisará cavar mais para que o nível seja o ideal a o escoamento dos dejetos humanos.
A água não está escorrendo com a velocidade adequada, está muito
nivelado. Precisa de um ângulo de desnível maior, para que não entupa o
canal.
Então, com aquela fala do pedreiro, fechou o dia de tanta escuta que a vida me proporcionou e que com vocês compartilho.
O que passei a manhã inteira fazendo foi escavando em meu ser para que a
água turva, fedida, poluída – escorra para um lugar adequado e não
entupa meu canal do amor e esperança.
Amadurecer como pessoa é cavar um pouco mais, todos os dias, em busca do autoconhecimento e da felicidade.
Precisamos de profundidade interior para constantemente reciclarmos
nossa esperança. E darmos vazão as coisas podres que vão se acumulando
em nosso coração, para que elas sejam processadas numa fossa-existencial
ecológica chamada tempo.
Se nosso nível for muito raso, faltará o declive emocional que nos possibilita sonhar e aguentar os trancos da existência.
Águas paradas e sem vida vão se acumular em nossos dutos emocionais.
Precisamos de tempo de infinitos, de belezuras, de mansidão,
generosidades e esperanças bobas para drenar a dureza da realidade, para
processar ódios encardidos, mágoas envelhecidas e todo tipo de emoção
negativa que grude em nosso ser.
Precisamos da paz de uma relva
macia para deitar-nos e olha o céu azul que se descortina, ouvindo-lhe
dizer-nos: ei, não é tempo de desistir, caminhe mais um pouco ainda!
Precisamos de um travesseiro de plumas de paineira branca para
descansar a jornada, para alimentar sentimentos bons, para aquecer
corações em cinzas.
E, ao levantar-nos dessa relva, desse tapete de
luz, nos sentirmos novamente corajosos para enfrentar os moinhos de
ventos na saga do vir-a-ser.
Amanhã completarei minha terapia deitando-me sobre aquela relva. Quanto aos frutos caídos, trouxe dois deles pra casa.
Quando cansado, deitarei meus pensamentos sobre aquele berço de Deus e
ali ninarei meu ser conectando-me novamente à paz, mansidão, bondade,
doação, perdão e amor.
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