Um Vaso de Alabastro.


Tomei um banho purificador. Durante o banho, lembrava-me do meu último cliente.
Ele não me queria como mulher. Vinha aqui algumas vezes no mês, apenas para deitar a cabeça no meu colo e receber carinhos.
Aí ele falava de seus empreendimentos, negócios, medos e alegrias.
Hoje, falou-me de seu Deus: “Yahweh”.
Ele tinha ido à Sinagoga, antes de vir à minha casa e estava extasiado com um trecho das escrituras que ouviu do rabino: “Esconde a tua face dos meus pecados, e apaga todas as minhas iniquidades. ”
Deitado em meu colo, ele repetia esse trecho, repetia, repetia...
Até que adormeceu.
Perto das três da manhã, ele acordou e foi embora.
Antes de sair, convidou-me para ir ajudar na cozinha, num almoço que dará na sua casa, na próxima terça.
Disse-me que vai receber um andarilho que anda pelas terras da Cananeia, dizendo-se filho de Yahweh, e que explica como ninguém as escrituras.
A água estava morninha. Tinha fervido um balde no fogão de lenha, colocando-o na tina, na qual tomava banho.
Botei também um pouco de água de perfume que guardava num velho vaso de alabastro.
Aquele perfume é a minha maior riqueza. Para comprar o óleo perfumado, e misturá-lo na água do alabastro, preciso trabalhar um mês. É caro.
Mas é o que tenho para me sentir perfumada e melhor como mulher.
Sempre que termino de atender um cliente, tomo um banho para me limpar e coloco em mim essa fragrância. Aí, esqueço de quem sou.
Amanhã preciso ir no mercado, ali na entrada do Templo, comprar fragrâncias dos vendilhões.
Terei que negociar bem, o vaso de alabastro está quase sem água de perfume e o apurado do mês não foi bom.
Penteio meus cabelos vagarosamente, lembrando-me do trecho que meu cliente leu até dormir: “Esconde a tua face dos meus pecados, e apaga todas as minhas iniquidades”.
Será mesmo que alguém poderia fazer isso por mim?
Estou cansada e triste.
Vivo escondida, na clandestinidade. Para muitos, sou só uma ajudante de cozinha: descasco batatas, pico cebolas, corto rutas para saladas. Porém, sou boa mesmo é em retalhar ovelhas, poucos conseguem extrair a picanha delas, como eu, separando as carnes dos ossos e aproveitando até o menor pedaço escondido entre costelas.
Sou boa nisso. Uma faca e um corte de carne são o que tenho de melhor.
Estou com insônia.
Quem teria o poder de apagar meu passado?
Acordo nessa manhã de segunda bem tarde.
Não dormi bem.
Vou à penteadeira e me olho. Não gosto do que vejo.
Estou um bagaço. Olheiras saltando de minha vida sem sentido, cada vez mais profundas.
Não consigo sobreviver só ajudando em almoços, e o que ganho por esse trabalho é pago em comida.
Pelo menos não gasto com comida.
À noite recebo visitas no meu quartinho. No beco em que moro, meu quarto é após a curva. Consegui com o dinheiro que escondi quando meu clã foi morto e expulso da Samaria. Vaguei por terras distantes e áridas por noites e dias.
Quando aqui cheguei, na Galileia, tinha caminhado mais de 80 km, numa região inóspita.
Com o dinheiro que salvei, do ataque dos Assírios ao meu povo, comprei esse quartinho de 12 metros quadrados. Aquela tina de madeira, dentro dele, foi amor à primeira vista. Quando estamos cansados de nós mesmos é bom ter um lugar para tomar um banho prazeroso, é só o que nos resta.
Apresso-me, perto das 15hrs os vendedores chegaram e colocam suas mercadorias na porta daquela grande Sinagoga. E meu perfume acabou.
Debaixo de minha porta, vejo que o generoso cliente de ontem à noite deixou um dinheiro extra. Oba, preciso negociar um novo vaso de alabastro. O meu está rachado.
Havia algo diferente na porta da sinagoga. Vários cochichando entre si. Outros, discutindo em voz alta trechos das escrituras e gritando: ele é um impostor, precisa ser detido.
Aproximei-me do vendedor de forma discreta. Não posso andar no meio dos puros. E, sei que eles se reúnem por aqui, chamam-se de Fariseus.
Meu cliente é um dos Fariseus. Ele é devoto do Torá, o livro sagrado deles, aquele que ele me falou na noite anterior.
Tenho que ser cuidadosa, minha vida dupla, se for descoberta, pode me trair, sendo presa ou apedrejada. Os tempos são de muitas conspirações, são de muita opressão.
E, aqui é o lugar dos Fariseus: os “santos” e “separados”: os escolhidos para cultuarem do o Deus do Torá.
Uma mulher belíssima sobe as escadarias, em direção à porta do Templo. Atrás dela, uns dez serviçais. Deve ser gente importante.
Os Fariseus a cortejam. Os vendedores se agitam, farejam cliente com dinheiro, cercam-na.
O vendedor que me atendia ameaça deixar-me só e ir em direção dela. Apresso-me e negocio um grama de óleo perfumado, e um saquinho de essências, em forma de sementes e folhas amassadas.
Na saída, pergunto quem é aquela mulher. Ele me diz: Joana, a esposa de Cuza, uma espécie de primeiro ministro de Herodes.
Tento olhar para ela, mas ela desvia o olhar de mim. Aliás, todos desviam.
Acho que já sabem que sou pecadora e tenho uma vida dupla.
Vejo ao longe o meu cliente, no meio de uma roda de pessoas agitadas. Temo por ele.
As pessoas apontam-lhe o dedo em riste, bradam imprecações, e ele tenta argumentar com o grupo de fariseus. Inútil, estão irados com ele.
Ele me vê e baixa os olhos. Revelo a ele o seu pecado.
Sinto muito mesmo.
Não quero isso para ele. Ele é uma pessoa boa.
Escuto que os fariseus tramam em expulsá-lo da sinagoga. Será por minha causa?
Um deles grita: oferecer 3 carneiros a um blasfemador que se diz filho de Javé é um acinte à fé.
Não iremos amanhã à sua casa, comer no meio desse malfeitor.
Relaxei.
Não tinha sido descoberta. Eles estavam falando do tal almoço, aquele que fui convidada a ajudar a na cozinha, tratando as carnes e legumes.
“Fique só com ele amanhã. Você é um traidor ao receber esse tipo de gente:
“Poderá de Nazaré vir algo que preste?”
Será que ouvi bem?
Nazaré.
Ah! Nazaré. Quando fugi da perseguição dos Assírios à Samaria, Nazaré foi a primeira cidade na qual tentei refazer minha vida.
Não foi fácil. Viúva, filhos assassinados, estrangeira e sem posses... tudo era tão difícil.
Cidade cara, grande e movimentada. Acabei comprando meu quartinho na vizinha Taricheé.
Temo pelo meu cliente que continua na roda da discussão.
Esse almoço amanhã pode terminar em confusão. Os ânimos estão alterados.
Quem será esse peregrino?
Na volta para Taricheé, cruzei com mercadores em camelos, subindo as montanhas em direção à Jerusalém, no sentido norte-sul. Botei preço num lindo vaso de alabastro.
Consegui comprá-lo com um excelente desconto. Acho que o sol amoleceu o coração desses mercadores.
De tão bonito, vou botá-lo na mesinha de centro. Essas cerâmicas são de muito longe, trazidas por desbravadores em rotas secretas. Junto delas trazem também tecidos bonitos, essências e temperos para todos os gostos.
Mas, não tenho dinheiro para nada disso. Minhas roupas estão um molambo.
Só tenho uma que não é rasgada que uso para atender meus clientes.
Mas, volto feliz para casa. Esse vaso mudou meu dia.
Que lindo.
Chego em casa e esquento água e um pouco de azeite em fogo baixo. Vou acrescendo a ele as sementes e folhas aromáticas que comprei.
Um perfume invade meu quartinho sem janelas.
Sinto a paz. Estou viva ainda, escapei da saga de meu clã e ainda tenho o que comer hoje.
Sinto-me orgulhosa, escolhi as sementes certas. Terei água perfumada para um mês.
O pouquinho de óleo perfumado que comprei, guardo em local seguro. Vale ouro. Deve ser usado para momentos muito especiais.
Dá para umas cinco vezes. É caríssimo esse óleo aromático. No dia a dia, uso a água perfumada que faço com azeite, folhas, sementes e água.
Tudo misturado e fervido, depois deixado por dias descansando até pegar o cheiro.
Ando me sentido muito mal, e sozinha. A única coisa boa das segundas é ver o pôr do sol.
Nas segundas, recebo o publicano, o cobrador de impostos que me extorque. Dizendo que me dá proteção.
Queria outra vida. Ele, além de não me pagar nada ainda é violento.
Apresso-me para recebê-lo. Raspo o pouco de água do alabastro velho e me perfumo. Não é um homem de se gastar fragrâncias com ele.
Só o necessário.
Um frêmito de alegria me invade, amanhã vou ajudar na cozinha, no almoço do andarilho que fala coisas boas. Vou garantir mais uns 15 dias de comida.
Feliz pelo dia de amanhã, amolo minha faca de desossar carneiros. Ganhei de meu finado marido.
O gume dessa faca é capaz de abrir em dois um fio de cabelo.
Guardo-a embaixo do colchão.
Escuto passos no beco, cães ladram, são perto das 23hrs.
O publicano chega, ele está bêbado. Diz coisas sem nexo.
Me usa de todas as maneiras, sinto-me um objeto em suas mãos. Suja, feia e triste, assim me sinto em seus braços.
Pelas duas da manhã, ele levanta, e sem dizer uma palavra, sai de meu quarto batendo a porta.
Não sem antes ameaçar-me novamente, dizendo que a minha proteção está saindo caro para ele.
Entro na minha tina e tomo banho morno. Choro muito. Sinto vindo do vaso o perfume que fabriquei no dia de hoje. Amanhã já estará bom.
Estou precisando me sentir melhor. Saio da tina e reviro o local que escondi o precioso óleo perfumado. Boto um pouco em mim, sabendo que agora só restarão umas quatro outras doses.
Quem seria esse Filho de Javé que teria poder para apagar meu passado?
Durmo pensativa, lendo para meu coração o que ontem aprendi: “e apaga todas as minhas iniquidades”.
A terça começa radiante. Pego minha faca e dou mais uma amolada. Lembro que sempre que recebo o publicano tenho tentações enormes de usar a faca nele, na hora em que dorme.
Desossando-o de todo mal que me faz. Um dia ainda lhe arranco as entranhas e me liberto de seu jugo.
Quem sabe não daria um bom cozido? Daria nada, aquele lá, até os urubus rejeitariam sua carne.
Procuro uma roupa menos surrada para usar, penteio meus longos cabelos.
Olho-me para mim e tudo é despedida. Tudo é saudade.
Choro mansamente, não um choro de dor, de perda, mas um choro de esperança. Sinto-me estranha. Algo está acontecendo comigo.
Na mesinha, miro o o vaso de alabastro que comprei ontem dos mercadores.
Nunca teria dinheiro para comprá-lo à porta do Templo. Ali tudo é mais caro. Foi uma pechincha.
O perfume curou, tal qual um chá, e está com um aroma delicioso.
Agora tenho uns 5 litros de perfume, nesse vaso de alabastro. Como um pedaço de pão e prendo meu cabelo.
Uma sensação de liberdade me invade.
Fazia tempo que não me sentia tão bem. Até de meus filhos não me lembrei, com tanta dor nessa manhã.
Se tem uma pessoa capaz de apagar meus pecados, eu preciso vê-la.
Preciso de uma nova razão para viver. Estou arrastando meu esquife por entre vielas e homens sujos, vivendo uma vida de humilhações e sem dignidade. Virei objeto.
Aquele vaso olha para mim e sinto como se ele dissesse: me leve contigo para ver o Filho do Pai.
Pego o vaso e o óleo perfumado. Levarei comigo. É a melhor coisa que tenho em minha casa, meu tesouro, o que me faz me sentir viva e gente ainda.
Vou levá-los para o almoço. Se essa pessoa que será recebida é mesmo tão especial, a ponto de apagar os pecados, por que então não estarei com minha alma perfumada quando o ver?
Dirijo-me apressada para Nazaré. Perdi muito tempo em reminiscências. Eu e minha mania de ficar a matutar.
Cubro meu rosto para não ser reconhecida, afinal sou a estrangeira, samaritana, viúva e mulher da vida. Sou a de quem todos se afastam.
Chegando na casa de meu cliente, aquele dos domingos, entro pelos fundos, pela cozinha.
Assumo a retirada das carnes de carneiros bem jovens. Desosso-a com perfeição.
Todos admiram meu trabalho. De uma ovelha retiro a picanha e a guardo, será servida em momento especial.
As outras ajudantes, não são muito de conversa, acho que sabem quem sou e de minha relação com o patrão delas.
Uma delas rompe o silêncio e pergunta-me pelo vaso. Digo-lhe que é meu tesouro, e que saio de casa com ele com medo de o roubarem. É nada. Saí com a intenção de tê-lo por perto, para quando minha alma feder, e o convidado sentir, eu possa me aspergir com ele e disfarçar o cheiro.
Quanto ao óleo, está escondido nas entranhas de meus peitos. Bem guardando num pequeno vidro.
Escuto alguém chegar, acompanhado de umas pessoas, todos homens.
Me trepo por sob o muro que divide a cozinha da sala de jantar e olho para ele.
Ao fitá-lo, foi como se eu fitasse o sol. Como se eu fitasse o sorriso de uma mulher que dá à luz. Como se eu fitasse o orgulho de um pai que leva para casa a comida de seus filhos.
Ele não me ver. Estou escondida olhando o grupo pelas frestas do teto.
A mesa está silenciosa. O fariseu calado. Pensativo. Outros idem.
O grupo do convidado não fala. Não se parecem à vontade. Será que temem uma emboscada.
Desço a escada e sinto uma grande vontade de ter com aquele homem. Tenho medo. Não me é permitido entrar na presença dos fariseus, imagine frequentar sua sala de jantar.
Algo se avoluma em meu interior. Escuto choro de séculos reprimidos, escuto minha alma ferida, relembrando-se de quando era criança livre.
Tomo de coragem e aproximo-me silenciosamente da mesa, por trás do convidado, para que ele não me veja, ou que eu seja percebida.
Será eu maluca, o que estou fazendo? Posso ser denunciada, apedrejada pelos poucos Fariseus que vieram ao banquete. Resoluta sigo, silenciosas, passo a passo em direção á grande mesa. Vou com meus perfumes.
Ajoelho-me por trás de sua cadeira e começo a lavar os pés do peregrino, com a água perfumada do vaso de alabastro.
O perfume aquece os corações de todos. As pessoas se levantam, olha para mim. Ele permanece em paz, fitando o horizonte. Choro convulsivamente ao lavar seus pés. Cada lágrima caída, a enxugo com meus próprios cabelos.
Tiro dos seios o vidro de óleo perfumado, tomo coragem e passo na sua cabeça, como se fizesse um cafuné.
Ele não diz nada. Mas sinto que gosta.
Ajoelho-me, por detrás dele e continuo a lavar os pés. Tomo coragem e beijo seu pés umas 1000 vezes.
Em cada gesto de carinho vou me achando, encontrando algo que me faz renascer. Quem será aquele homem que dele emana a paz e misericórdia e faz sentir tão bem ao seu lado, quase renascida. Quem será?
Eis que o peregrino-convidado fala. Dizendo que ouvira os pensamentos de meu cliente, o fariseu Simão, até então mudo e com semblante pesado:
Os pensamentos de Simão são lidos e diziam assim: “Se ele fosse realmente filho de Deus saberia que quem toca seus pés é uma pecadora, impura”.
O peregrino ergue-se e olhando para Simão diz que ao entrar na sua casa não recebeu nenhum gesto de estima, de apreço, um presente, um galanteio, um copo de água, uma palavra mansa. Que entrou na casa de Simão e ele não o acolheu, não fez festa, não se alegrou.
E diz ao Simão que a única pessoa que realmente tinha valorizado a sua presença era aquela mulher que lavava seus pés, o beijava e ungia seu cabelo com óleo perfumado.
Diz ainda, olhando para mim com um olhar de lua cheia, um olhar de eternidades: teus pecados foram limpos.
Não conseguia me levantar de tão emocionada. Sentia que poderia morrer agora, ali nos pés daquele senhor.
Eis que o convidado se levanta da mesa, chama seus discípulos e parte. Sem falar mais nada. Um deles me ergue, chama-se João. E me dá um beijo na fronte.
Atônita, largo tudo. Pego minha faca, o vidro de perfume e o vaso de alabastro e sigo o grupo mais atrás.
Depois desse toque de amor não voltarei mais à minha vida.
Penso comigo, eles devem precisar de uma cozinheira, afinal são 13 pessoas caminhando deserto afora.
Sou boa em desossar carneiros. Deverei seguir o grupo. Boto o vaso de alabastro na cabeça, e sigo a comitiva daquele que me fez renascer. De agora em diante, eles comerão as melhores refeições que já comeram.
Ah! Se comerão...
Sentido que eu o seguia, o Filho do Pai me fita e diz, sem falar uma só palavra: Vem comigo, doravante serás testemunha do quanto meu Pai pode desossar pecados entranhados, em almas tidas como perdidas, reconduzindo-as ao meu reino.
Sempre que alguém achar que sua vida é tão ruim, suja, pecaminosa e carrega culpas, mais pesadas do que a torre do Minarete, lembrará de sua história e do quanto naquelas lágrimas e perfumes tu me adorou e se refez. Hoje, em teu coração aconteceu o Salmo 51, "e a misericórdia do Pai apagou todas tuas iniquidades. ”

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