Ensinar a pensar


Professor Adoniran e Professora Luciene, no lançamento meu livro.

Uma das aulas mais esperadas, quando cursava a Oitava Série e Científico - Nível Médio de hoje, era a do professor de história, o Adoniran.

Naqueles anos, entre 1978 e 1981, no saudoso Colégio Diocesano Pio XI, aquele professor me agraciou com algo que carrego até hoje, possibilitando uma mudança significativa na minha visão de mundo.
Nunca esquecerei seus textos, impressos em mimeógrafo a álcool, no qual toda a aula começava com uma poesia, ou uma letra de MPB.
Era algo místico, ele pedia para fazermos um círculo, entregava aquela folha já desgastada, por ter passado por outras turmas, e nela havia palavras para degustarmos seu sabor.
Lembro que conheci as letras de Fagner pelo professor Adoniran.
Risonhamente, ele saia distribuindo para cada um a letra, como a da canção noturno, abaixo:

Noturno (Fagner)

O aço dos meus olhos
E o fel das minhas palavras
Acalmaram meu silêncio
Mas deixaram suas marcas
Se hoje sou deserto
É que eu não sabia
Que as flores com o tempo
Perdem a força
E a ventania vem mais forte.

Depois, num pequeno gravador, ele colocava a canção para tocar. Quando era canção. Quando era poema, ele o declamava.
Depois começava o sabor de ensinar. Parágrafo a parágrafo ele nos provocava a entender o conceito que estava por trás das palavras.
- Pessoal, o que Fagner quer dizer com “ o aço de meus olhos? ”
- Pessoal, o que Fagner quer dizer com “se hoje sou deserto? ”.
E tome participação. E tome abertura do pensamento à força das palavras, procurando compreende-las em sua essência, e entrelinhas.
Após esse “aquecimento”, ele abria o livro e com o mesmo estilo dialogava conosco sobre a história do Brasil. A não escrita.
Adoniran influenciou meu modelo mental, de como me aproprio das palavras para buscar nelas significados, ou o que dizem sem querer, ou não dizem, mesmo querendo.
Nunca mais li um poema do mesmo jeito, nem ouvi uma canção.

Precisamos de mais Adonirans, desenvolvendo nos jovens o pensamento crítico. A capacidade de análise, de mergulhar num conceito, de não consumir orelhas de livros, apenas.
Vejam a matéria de hoje do Correio Brasiliense:
“Samsung pede a usuários do Galaxy 7 que desliguem o aparelho.”
Nas horas em que leio algo assim, ou do tipo, volto àquela cadeira do Pio XI e escuto meu querido professor dizendo:
“O que vocês entendem disso? ”
Escuto a turma participando da aula, com tema Manchete Correio Braziliense de 11/10/2016.
- Como mandar desligar aparelho?
- E se eu não quiser desligar?
- O celular é meu, ela não pode me mandar fazer nada, já comprei.
- Quando será ligado novamente?
- E se meus parentes e amigos precisarem falar comigo?
- Quem compra um celular para desligá-lo?
- Por que desligá-lo?
- Quem vai substituir meu celular?
- Reclamo para o Bispo?
Salve Adoniran!

Nessa sociedade de ovelhas, ditas pensantes, precisamos desenvolver a capacidade de análise crítica.
A etimologia de "crítica" vem da palavra grega krimein, que significa "quebrar". A ideia da crítica é quebrar um conceito em pedaços para analisá-lo de vários ângulos, ou perspectivas.

Mais alguns exemplos de matérias que em mim baixam o professor Adoniran:
Uol - “Publicar textos que Renato Russo fez aos 15 anos é ofendê-lo.”
Veja - "Consumir o alimento 5 segundos depois não é seguro."

Ensinar a pensar deve ser um dos maiores legados dos mestres que tivemos pela vida, formais ou informais.
Ensinar a questionar o lugar comum das atitudes, comportamentos e gestos dessa sociedade excludente e altamente individualista que estamos a produzir.
Ensinar a pensar sobre o pensado. Que missão digna de por ela viver.
Sem cair no outro extremo, o de criticar tudo, e o de procurar pelo em ovo.
Mas, não abdicar de uma visão consciente e transformadora da realidade.
Não terceirizar sua opinião ao coro de massas insanas.
Que, engolem e consomem tudo que a ela é destinado, sem se permitir ao benefício da dúvida. Ou a exercitar a leitura das entrelinhas, das ideologias, subliminares ou não, que perpassam o texto.
Saudades das aulas do professor Adoniran. Não sem razão, ao lançar meu primeiro livro em Campina Grande-PB, fiz questão de que fosse no museu que ele criou, nos fundos de sua casa.
Foi uma tarde e noite memoráveis.
Então caros amigos e amigas, tenhamos mais cuidados com as palavras. Elas não são inocentes. Elas carregam intenções, significados, cheiros, sabores, tons.
Por exemplo, alguém diz que o assassino agiu em “legítima defesa”.
Acione a tecla Adoniran: “O que é legítima defesa? ”. “Em que condições o conceito pode ser usado? ” Houve testemunhas que endossam essa posição? ” “Ele estava defendendo, de forma legítima, o que mesmo? ”
Outro exemplo, GDF implanta a taxa de contingência sobre consumo de água?
“O que é contingência? ”. “De quanto é essa taxa? ” “É mesmo uma taxa ou não seria uma multa? ”
“Por que a população vai pagar uma multa sobre o que gastar a mais? Não seria melhor ter um desconto sobre o que economizar? ”
“É legal essa taxa de contingência? ” “E quando os reservatórios encherem, a taxa será devolvida? ”

Percebem como é legal, acionar a tecla Adoniran. Vamos procurando o sabor e sentido das palavras, vamos despindo-lhes.

As palavras formam, deformam e conformam. Portanto, pense bem antes de usá-las, você poderá estar destruindo vidas, ou libertando autonomias. Fique com a segunda.
Nessa babel digital em que vivemos, não se tem nenhum cuidado com as palavras.
Nem tampouco analisa-se mais profundamente, no estilo professor Adoniran, as mensagens contidas nelas, explícitas ou implícitas.
E alguns ainda as curtem, ou compartilham.
Sem qualquer esforço de comprovação e veracidade, de confronto com a análise crítica, permitindo-se a outras vistas do ponto.
Ensinar nossos jovens a pensar é urgente. Mas, talvez isso só aconteça em outro tipo de escola, e até de família.
Precisamos desenvolver a capacidade de leitura da realidade, da vida, do outro e de si mesmo, para que possamos assumir com protagonismo nosso futuro, e parar de repetir e copiar tudo que a aldeia global apregoa 24hrs por dia, sem qualquer juízo de valor, ou pudor ético.
Adoniran entra na sala, é sua última aula, nossos olhos marejados. Estamos a dias do natal de 1981, E iremos partir para a faculdade da vida. Silenciosamente coloca uma última canção, distribui o texto. É a música Oh My Love, de Fagner
E para nós deseja que vida afora nunca nos esqueçamos do que fala a canção e que tenhamos sempre a mente aberta, a espinha aberta e um coração em eterno recomeços, de olhos bem abertos e prestando atenção a tudo de bom, belo e virtuosos que a vida ainda pode nos oferecer:

Oh! My Love (Fagner)
Pela primeira vez na vida
Meus olhos estão abertos

Oh! Meu amor
Pela primeira vez na vida
Meus olhos vêem

Eu vejo o vento, eu vejo a árvore
Tudo está tão claro em meu viver
Eu vejo a nuvem, eu vejo o céu
Tudo está tão claro em nosso mundo”

Ricardim, pergunta-me Adoniran, e antes ele não via porque?

Essa é fácil professor, por que têm coisas que só conseguimos ver quando amamos, com olhos amorosos, o ódio nos cega, a vingança idem, a mágoa, inveja e o medo, também.
Só olhos renascidos de si mesmos abrem-se ao milagre do viver.
Valeu professor! Eu vejo o vento, eu vejo a árvore... 
E só queria que soubesse que você teve um papel importante nessa visão.

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