O Reclamão de Poeira Cósmica


Se há um mal que atinge toda a humanidade é a reclamação.
Não falo da reclamação legítima, por direitos, por cidadania, por melhores processos, ou coisas como tal.
Falo da reclamação da poeira cósmica.
Como assim, Ricardim?
É amigos, a pessoa está tão doente que reclama até da chuva de partículas cósmicas da qual ouviu falar que cairia nessa noite.
A doença da reclamação contagia.
Você está numa rodinha de amigos, o papo gostoso, leve, aí um começa: reclama do síndico, do vizinho de apartamento, da vaga apertada da garagem, do barulho de crianças nas escadas.
Pronto, conte até três e parece que somos regidos pelo maestro reclamão, entramos como diz os jovens na mesma vibe, e não sobra nada: da sogra ao trabalho.
Essa doença se instala em nós com a força de um hábito.
No início são reclamações legítimas, ponderadas, conscientes.
Mas, com o avançar dos anos, o reclamão doente vai estendendo sua reclamação para todas as áreas de seu viver.
Fruto de uma personalidade altamente rigorosa, rígida, inflexível, perfeccionista e até, em alguns momentos, intolerante, a mente do reclamão se abastece dela mesma. Nutre-se a si mesma.
Os pensamentos entram em loop, da hora em que acorda, á que vai dormir, sempre destacando o que não está, segundo seu filtro seletivo de percepção distorcida, o que não está nos “conformes”.
Considero seu poder quase o de um vírus. No caso, um vírus emocional.
Para ilustrar o quanto o hábito de reclamar de todos e tudo pode se converter numa doença, vou associar com minha compra de bicicleta.
Recentemente entrei em vários sites para comprar umas bicicletas aqui pra casa.
Fiz pesquisa no Google, em lojas especializadas, e até no youtube.
Confesso-lhes que tive dificuldades. Há um montão de tipos e funcionalidades – em cada acessório, e fiquei perdidim.
Bem, essa compra se realizou há um mês.
Quem avisará aos sites que já comprei?
Porque agora, toda vez que entro no Google, Facebook e até no prosaico Gmail, tem um anuncio, ou vários deles, de ofertas de bicicleta.
Os mecanismos de busca entenderam minha necessidade e expectativa: comprar uma bicicleta. E agora ficam me atolando de comerciais.
Entendeu a metáfora?
Não?
Deixe eu ser mais claro. O nosso cérebro é um grande Google. Ele ativa o mecanismo da percepção seletiva para focar no que queremos encontrar, e no que está de acordo com nossa visão de mundo.
Então, ele cria o hábito, para simplificar seu processamento.
O hábito de reclamar atua retirando da realidade apenas os aspectos que estão fora de ordem, que deixam a desejar, que estão aquém de nossas expectativas.
E o hábito de reclamação atuará como esse Google das Bicicletas. Em todos os nossos relacionamentos, nas interações de consumo, na percepção e sentido do trabalho e da vida, lá estará o hábito em nós arraigado, extraindo da realidade coisas para retroalimentar sua energia reclamatória.
Alguns exemplos: Uma iniciativa maravilhosa e solidária de oferecer pão quentinho, na porta do Condomínio, em dois horários.
Então o reclamão doente entra na comunidade e solta seu veneno. O contexto é de todos elogiando a qualidade e a iniciativa, e aí ele solta um: “Não gostei, o pão está muito massudo”.
Nessa hora ele ativa os hábitos do mesmo naipe adormecidos e começa a sinfonia da rabugice: “O horário é muito ruim”. “Não tem troco”. “Quem disse que quero doar parte da renda aos necessitados, melhor me dar em desconto”. “O saco que acondiciona o pão se rasga fácil...”. “Deve ter alguém ganhando um por fora”.
Nunca vi tanto mal humor solto pelas redes sociais e na WEB.
Isso é ruim. Não falo de postura consciente, falo de doença.
A doença de reclamar até da poeira cósmica.
No meus mesmo condomínio, acompanho umas discussões pelo whatsapp que beiram o surreal.
Outro dia um coelho soltou-se e foi pastar na rua. Moro num Condomínio horizontal, há 25 KM de Brasília, numa área que antes era uma imensa fazenda do Cerrado. Pois bem, uma reclamona fez o maior furdunço, porque o coelho estava indo pastar na sua calçada e seus cachorros latiam.
Queria multar o coelho, o dono do coelho, e até botá-lo numa carrocinha de coelhos, se é que tem.
Outro dia, nessa prosaica comunidade, uma pessoa revelou que estava com Zika. Não pensem que o primeiro post foi de solidariedade. Pelo contrário, a pessoa nada sutilmente sugeriu que o condômino fosse isolado, para que mosquitos não o picassem, na sua própria casa, e saíssem condomínio adentro. Decretou o isolamento do pobre coitado, que quase morria de dores terríveis da Zika.
Estamos ficando todos doentes. No trabalho a roda mais animada é a de falar mal do chefe. Em segundo lugar a dos colegas de outras equipes. Em terceiro da própria empresa. E em quarto do próprio trabalho.
Mas, é um falar mal doente. Não é para mudar. Não é para propor transformar algo. É só para falar mal, pelo simples prazer, o do hábito, de destilar a reclamação. E sair com o peito estufado, de quem tem certeza de tudo.
De quem é rígido, inflexível, e cheio de direitos. Aliás, vivemos a época de direitos. Todo mundo cheio de direitos.
Há uma boa notícia. Caso o reclamão comece a fazer um diário de seu dia, anotando as reclamações proferidas, ele pode começar a frear a força do hábito.
Chamo a isso de pensar sobre o pensado.
Por incrível que parece, uns 50% do que pensamos ao longo do dia, não é pensado por nós.
São barulhos de nossa mente, são rotinas e modos de ser pré-configurados que sobre eles vamos perdendo o controle.
Assumir o controle do que pensamos, e do efeito dele sobre nós mesmos, o outro ou a própria realidade é uma questão e saúde emocional.
Experimente botar uma pulseira no braço, amanhã, e ficar pelo menos um dia sem reclamar. Procurando ver a vida com o olhar do que ela está em sobra, e não do que lhe falta.
E, todas as vezes que ao pensar sobre o pensado, se flagrar reclamando, troque a pulseira de posição no braço. Pode ser aqueles elásticos de amarrar dinheiro, que seja.
Você ficará impressionado(a) do poder do hábito reclamão em nossas vidas. E não falo em reclamação apenas pensada. Essa não vale trocar de lugar a pulseira. Falo de reclamação falada, ou digitada.
O cara compra um carro zero bala, e reclama de um barulho. Outra pessoa acaba de pintar a casa e reclama que a massa não foi bem lixada em 2% da área.
Se você tem filhos, e for do tipo reclamão de poeira cósmica, cuidado. Eles irão aprender. Aprenderão a fiar tão rígidos, pensamento inflexível, cheio de razões e radicais em sua expectativa sobre o outro, a si mesmo e as coisas tal qual você.
Fui criado numa casa que não ouvia reclamações. E não é que não tínhamos problemas. Mas meus pais perdiam mais tempo em buscar alternativas para solucioná-los do que ficar na murmuração e reclamação.
Meus pais falavam bem do seu chefe, Diretor Stênio Lopes. Falavam bem do Senai, mesmo pagando-lhes muito pouco. Nunca vi reclamarem de colegas de trabalho, de vizinhos, da família ou de sua condição social. Tudo era esperança, alegria e paz. Eram feliz com o que tinham.
Quando papai voltava das visitas quinzenais, ao fim do mundo, supervisionando o funcionamento de precárias escolas móveis, montadas em rústicos barracões de prefeiturasaíba. Sob calor escaldante, em locais sem estrutura alguma, nunca o vi reclamando da dormida, da comida, do calor ou distância, e até dos alunos e professores. E, ele fez essa viagens por uns bons 20 anos.
O verbo reclamar não habitava em nosso lar. Então, com isso quero dizer que podemos reprogramar o cérebro. Sair desse hábito nocivo, avaliar o pensar sobre o pensado.
Se tocar se não está sendo chato, sempre avaliando a si mesmo, os outros e a realidade como em falta para consigo mesmo. Sempre com murmurações. Nunca acolhendo o que a vida oferece para aquele momento. Sempre colocando-a numa posição de dívida, de quero mais.
Do tipo que chega num esplendoroso hotel à beira mar e reclama que só pega dois canais de TV. Do tipo que adora postar negatividade, murmurações, nunca vendo o que já está bom.
Tem que parar de acumular esse tipo de coisa, ao longo do dia. Para não ficar selecionando justamente isso, o que é digno de reclamação, como dados primários da realidade. Tal qual meus anúncios de bicicleta fazem no meu mundo digital.
Deixo-vos com um psicólogo Português que o reputo muito, o Miguel Lucas:
“A pessoa reclamona torna-se hábil no desenvolvimento de uma percepção apurada e refinada em tudo que possa ser-lhe desagradável ou que não esteja de acordo com aquilo que quer e gosta. A pessoa especializa-se numa sensibilidade desmedida para aquilo que pode causar-lhe algum grau de insatisfação, mesmo que essa insatisfação seja ínfima. Com um “detetor de queixa” apuradissimo, tal Homem Aranha com o seu “detetor de perigo” a pessoa fica à mercê de um mecanismo que pela força do hábito se tornou automático. Passa a acontecer sem a pessoa se dar conta, o que a impede de ter uma noção do seu diálogo destrutivo.
Será que toda a enxurrada de queixas trouxeram alguma vantagem para a sua vida, para o seu bem-estar, para a sua produtividade no trabalho, para o seu relacionamento? Provavelmente não. Então, certamente justifica-se tomar consciência do possível impacto negativo que as queixas desmedidas podem estar a provocar na sua vida, e eventualmente nas pessoas com que interage.
Pelo menos, nem que seja por breves momentos questione-se:
 Porque é que é propenso a queixar-se?
 Tem sido útil?
 Ajuda-o no seu dia-a-dia?
 Promove-lhe a motivação?
 Ajuda a influenciar positivamente os outros?
 Promove as soluções para os seus problemas?
 Promove-lhe a saúde física e psicológica?
Arrisco a dizer, que salvo raras excepções, queixar-se nada tem de positivo. É um comportamento verbal autosabotador. Antes de queixar-se reflita:
 É verdade?
 É benéfico?
 É inspirador?
 É necessário?
 É simpático?
Se maioritariamente responder negativamente. Não se queixe. Trave a sua língua a tempo de conseguir reestruturar o seu pensamento e pensar numa alternativa mais viável e adequada à interpretação da situação que enfrenta.”

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