Um pé de Ipê Verde


Caminhava pelo meu condomínio, dia de sol bonito,língua pra fora, faltando ainda 1 km dos 2 que "malho" diariamente.
Hoje, fazia um domingão de céu Brasília, daqueles de um azul de prender o fôlego. Então, decidi levar a câmera comigo.
Nunca tinha feito isso. Ela pesa e fica desconfortável.
Mas, o dia pedia instantes. Tava com cara de praia.
E, nem de tênis fui, botei umas havaianas e tome marcha atlética.
No caminho, escutei uns piados de coruja - daquelas que fazem ninho na terra. Então, parei para fotografá-las.
Eis que ergo minha vista e vejo uma cena de parar meu coração. Finalmente, 16 anos depois que por aqui cheguei para ficar, vi o raro Ipê Verde, ali à minha frente e cacheado de sensíveis florezinhas verde-limão.
Eu sabia que existia, mas nunca tinha visto. Um amigo até me disse que eu deveria ir ao Parque Olhos D´água, aqui em Brasília, que lá tem um espécime dele, o belo e misterioso Ipê Verde.
Suas delicadas flores passam quase despercebidas, entre as folhas.
Trata-se de uma arvore em extinção. Não só pela dificuldade de vê-lo, mas talvez por isso mesmo.
Os tratoristas e donos de terrenos não percebem que ele está florido e associam a um outro tipo de árvore, e tome enxada e trator por cima deles.
Já os amarelos, brancos e rosas conseguem marcar sua presença, e, alguns deles, digo alguns, são preservados nas derrubadas, ou propagados por mudas mil.
E o verde foi ficando esquecido, de ser propagado em viveiros, de ser preservado, de ser cultivado, de ser apreciado: perto dos outros, de flores reluzentes e estonteantes, ele não é visto.
Lembro das pessoas mais simples das organizações de trabalho,
elas são Ipês Verdes. Tem sua beleza, sua graça, sua formosura e história de vida, contudo, não são vistas - no meio de tantos crachás: rosas, brancos e amarelos.
Entendem a metáfora?
Muita coisa em nossa vida é assim. Não é percebida, até que paremos para apreciá-las.
Até que desafiamos nossa retina, a ordem natural das coisas, e a percebemos num emaranhando de tons parecidos.
Todos os copeiros são parecidos, mas não são só copeiros. Todos os vigilantes são parecidos, mas não são só vigilantes. Todos os aux. de limpeza são parecidos, mas não são só aux. de limpeza.
E, assim por diante.
Eles têm sua própria flor. Rara flor. Só não são percebidos, ao habitarem um ecossistema humano que valoriza mito o cargo, a posição, as aparências e quem está no topo da cadeia alimentar corporativa.
Danilo é um Ipê verde. um belo ipê verde. Ele é motorista da Copel - Companhia de Energia do Paraná. Ele foi me buscar para uma palestra, que distava 340 KM do aeroporto.
Coloquei-me numa postura apreciativa, de sua vida e história. Assim como ele se colocou perante minha palestra, querendo saber de tudo da psicologia positiva.
Sentei-me logo na frente e comecei a prosear. O Danilo é bom de papo, uma fala quase mineira: mansa, constante e boa.
Aprendi a apreciar histórias de ipês verde. São pessoas lindas e esquecidas pelas organizações do trabalho. Minha missão e dar-lhes vida.
Aos doze anos, Danilo perdeu o pai. Muito pobre, aprendeu a se virar, junto com sua mãe e avó.
Nos finais de semana, sua mãe deixava ele ir brincar na casa do vizinho, o Sargento, que tinha três filhos, de idade próxima a dele.
Mas, Danilo sofria a ausência do pai. E apegou-se ao Sargento, o pai dos meninos, um oficial do Exercito.
Sargento estava construindo sua casa. Como obra de igreja, todo final de semana crescia uma parede ali, uma porta sentava acolá.
Danilo pegava o carrinho de servente e passava o final de semana ajudando o Sargento. Depois, ao voltar para casa, ganhava umas moedas.
Na sétima séri,e ele ia reprovar em matemática. Até que o Sargento soube, e deu-lhe uns puxões de orelha e muitas aulas particulares, "de grátis", e ele passou, tornando-se depois o melhor aluno de matemática.
Danilo aprendeu a dirigir caminhão, e começou a fazer viagens nos caminhões dos outros.
Vida difícil, estradas perigosas e três filhos para cuidar. Com muito esforço, somando a ajuda de sua esposa que trabalhava para fora, ele juntou R$ 50.000,00 e comprou um caminhão meia-boca, mas que daria para fazer entregas em Curitiba, no limite em SP.
O Sargento aposentou-se do Exército e foi morar numa pequena cidade próxima de Jaú. Um belo dia ele visitou Danilo, agora homem feito, e ofereceu a casa pra ele.
Ele falou que tinha Danilo como um filho e que Danilo pagaria a casa aos poucos, e que faria para ele um abatimento de 60%, vendendo a casa por R$ 60.000,00.
Danilo insistiu que não tinha dinheiro, que ganhava R$ 1.800,00 com os fretes e que não poderia pagar.
O Sargento irritou-se, disse-lhe que não queria dinheiro, que ele assina-se os papéis e que depois ia vendo como pagava.
Danilo disse-lhe que não teria como dormir sabendo que devia ao seu melhor amigo R$ 60.000,00. Que não teria como olhar para os filhos, ou para o espelho, com sua consciência limpa.
O Sargento, bem chateado, voltou para sua cidade.
Aí uma cerração muda o rumo da prosa. Danilo teve que parar o carro no posto numa estrada, no caminho de uma entrega em SP, estava impraticável dirigir com a neblina.
Era 3 da manhã. Ele ligou para a mulher e disse-lhe que ia sair da vida de caminhoneiro. Ela disse: Glória a Deus.
Continuando, disse-lhe que com o dinheiro do caminhão iria comprar a casa deles, que agora ele, ela e o tr~s filhos tinham um lugar para chamar de seu.
Ela deu mais um Glória a Deus, dessa vez emocionada.
Por último, perguntou-se se ela podia ajudar trabalhando, enquanto ele procurava algo. Ela, feliz da vida, disse-lhe que trabalhar nunca foi problema e que faria era dobrado agora.
Danilo conseguiu um emprego de motorista de ônibus. Numa linha perigosa, foi assaltado 3 vezes, uma das quais com revólver na cabeça. Mas conseguia novamente sua renda do caminhão, R$ 1.800.
E agora tinha uma casa. Voltando da garagem, num domingo à tardinha, um vizinho disse-lhe que havia um fusquinha para vender, "o motor está bom", o resto uma tranqueira. Ele pede R$ 3.000,00 - de graça. Danilo, nem em casa foi, lembrou-se que seus filhos nunca puderam passear de carro, já que caminhão velho não entra em muitos lugares (altura da carroceria) e, convenhamos, não é o melhor lugar para passear com mulher e três filhos.
Danilo lembrou-se que seu filho mais velho sonhava com um carro. Então, negócio feito, encostou seu carro na calçada e foi comunicar à mulher e filhos. Disse ao mais velho que o carro só prestava o motor, era um fusquinha cheio de ferrugem, estofamento ruim e pneus carecas. O filho mais velho correu do quarto em direção á calçada, quando viu o carro, deitou-se sobre o capô e o beijou.
São assim os sonhos de gente pobre, os beijos de gente que cada pequena vitória é celebrada como única. Foi assim o beijo do filho do Danilo no capô daquele fusca.
Danilo, leitor assíduo, viu que tinha anuncio de seleção para motorista da Copel. Ai se inscreveu e passou.
Até hoje, com 8 anos de casa, não entende como convive com tanta gente desmotivada e reclamando da empresa.
"Sabem nada. Isso aqui é o paraíso, mas que nunca trabalhou no inferno não valoriza quando está no céu. "
Aí, ele abre um sorriso, e me fala que passou na seleção para aux, comercia da Copel.
E que foi o décimo colocado, estudando noite e dia os temas do edital.
Em algumas viagens, com Diretores, aproveitava para perguntar-lhes sobre assuntos que não consegui entender. Um deles, com profunda compaixão, passou a ensinar-lhe por 15 minutos, todos os dias.
Pergunto-lhe, e a vida de motorista?
Ele me diz, ficará para trás,"vou pra frente em busca de minhas melhoras."
Os filhos de Danilo fazem Eng. Civil, Eng. Mecânica, e a filha, a Carolina, está no último ano do médio e quer - no momento, ser psicóloga.
Com um pai desse, um ipê verde e raro, será uma excepcional psicóloga.
Obrigado Danilo, por ser esse pacato cidadão brasileiro, trabalhador, resiliente e esperançoso que o melhor ainda está por vir.
Na saída, ele perguntou-me se podia participar de minha palestra. Falei que lógico. Disse-lhe que nela falaria de pessoas como ele, que encontram sentido na vida e no trabalho, que nutrem só coisas boas na cabeça - emoções positivas. Que nutrem relacionamentos significativos: O Sargento. Que se engajam em busca de desafios, seu concurso. Que se sentem realizadas quando avançam um passo na escada da vida, seu fusquinha.
E que é disso que é feita uma vida boa: Emoções Positivas, Relacionamentos Significativos, Sentido, Engajamento e Realização. E de pessoas como sua mãe, com 88 anos, que carpe os fundos da casa todos os dias, e nunca aposentou-se da vida.

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