Não eram camarões, eram bênçãos! (Autor Ricardo de Faria Barros)

Era sábado de feira livre no Mercado Central de Campina Grande-PB, e adentrei nela pela rua das flores. Eram flores de todos os tipos, formatos e para as mais diversas ocasiões. Procurei as de cor laranja. Minhas prediletas. E não me pergunte o porquê. Amo flores laranjas. De todos os tipos. O tom laranja me acalma. Entrar na feira por aquela rua rejuvenesce a alma e restaura esperanças. E ao atravessá-lo, mesmo que não se compre nenhuma delas, não tem como a alma não seguir caminho sem sair dali mais perfumada.
E, almas perfumadas são presentes de Deus em nossa vida. São como quem avista uma borboleta azul, ou recebe nas faces a brisa Aracati, que sopram sobre o Vale do Jaguaribe-CE.
Segui caminho e parei nas lojas de mangai. Cheias de "pra que isso?" nordestinos. Verdadeiras têm de tudo. De cangaia, cabresto, amolador, pote, fumo de corda, lampião, enfeites, bolsas, enxada, arataca, alpercata e boneca de sisal, que se olhar de uma vez, como diz o poeta Jessier Quirino, dá até uma doidiça.
Saindo de lá, carregado de mimos para pessoas amadas, segui para a ala dos pescados e frutos do mar. Um deleite só de ver e sentir o aroma, por ali passar.
Tem peixe fresco, peixe salgado, caranguejo, tem bacalhau popular, sardinha, têm tranças de piabas, fazendo cortinas nos balcões, uma belezura, e os montinhos de camarão de todos os tamanhos, para caldo, pizza e moqueca. E tem a gritaria dos vendedores, que anunciam: "olha o peixe fresco!" Feira livre sem gritaria num é feira, é supermercado. Extasiado, parei numa banca para fazer as fotos dessa crônica, de montinhos de camarão, salgados e secos, devidamente perfilados. Notei que enquanto eu tirava as fotos, o senhor que atendi me fitava com surpresa. Orgulhosos com os seus camarõeszinhos que posavam para a foto.
Ele se aproximou e perguntou-me se eu queria levar algo. Disse-lhe que estava de passagem, logo viajaria para Brasília e que vim matar as saudades do Mercado. Aí, ele me disse que aqueles montinhos de camarão tinham história. Meus olhos brilharam, amo acolher histórias.
Ele se apresentou, me chamo França. Qual é sua graça? Me chamo Ricardo.
França contou-me que na década de 70 ganhava muito dinheiro com confecções.
Era caixeiro viajante e fazia todo o interior da Paraíba, levando peças de roupa de importante estabelecimento: Tecidos Cardoso, acho que era esse nome. Aí, após 20 anos de muita labuta, e de segunda à sexta fora de casa e percorrendo estradas de barro, comendo e dormindo mal, ele acordou num sábado muito cansado e querendo largar daquela vida. E, para desparecer, veio com o filho de oito anos no Mercado Central.
Aí, enquanto ele comprava peixe numa banca, seu filho soltou-se de sua mão e foi “curiar” noutra banca, assombrado que estava com os motinhos de camarão ali expostos, sobre o balcão. E, do alto de seus 8 anos e santa inocência, pegou alguns para comer, como se fossem pipocas. Aí, o dono da peixaria, na qual o menino "amealhara" um pouco de camarão gritou com ele e o ameaçou com um porrete. Sr. França, ouvindo a gritaria, virou-se e viu que era com seu filho. E saiu em seu socorro. Pagou o que o filho pegou, pediu desculpas, comprou ainda mais um pouco, de camarões secos e salgados. E ainda ouviu do dono que o filho dele agiu como meninos de rua, sem educação.
Ele olhou para o filho e disse: vãos para casa andando, e comendo camarão. “Tu come um, eu como outro. Eu preciso pensar, e andar faz bem".

E seguiram os dois por uns 6 km, até o bairro do Catolé, onde França morava. Chegando em casa, França disse assim a mulher: "Hoje nosso filho se sentiu numa arapuca e teve medo, pegar indevidamente uns camarões de banca de feira. Assim como ele se sentiu, eu estou me sentindo no meu trabalho, em relação à minha família, que não vi crescer por tanto que me ausentei. Eu não aguento mais essa vida mulher, longe dos meus, e por vinte anos, e vou pedir as contas". Aí, ele de fato pediu as contas e com o.... [Chegou um cliente, e o França ficou irritado de ter que parar a história. Fiz sinal para ele que tinha todo o tempo do mundo. Ele atendeu rapidamente o cliente.] E com o dinheiro da indenização e suas economias, disse a mulher que iria vender camarão na feira. 

Então, passou a procurar um box vazio, para comprar ou alugar, e por muitos sábados à frente. Sempre indo com seu filho de 8 anos. Um dia, meses depois, ele achou um à venda, e bem pequenininho, ao lado do vendedor que foi rude com seu filho.
Ele comprou o box, e no outro sábado madrugou no fornecedor de camarão. Comprou todo o estoque que ele tinha trazido. Naquele sábado, só França tinha camarão seco.
Logo pegou um saco deles, e os retalhou em montinhos sobre o balcão. Como os da foto.

E, alguns meninos de rua passavam pelo balcão dele e "roubavam" um pouco de camarão. Ele via, e fingia que não via, e sorria pelo canto dos olhos, sem nada fazer.
Aí, umas seis horas depois, já no final de feira, o concorrente do lado, que não o reconheceu, disse que daquele jeito ele iria quebrar. Pois a molecada e os pedintes estavam comendo tudo que era dele. E que o negócio dele iria falir.
França, então olhou para o concorrente e soltou em voz bem alta um: “Amém!”
O concorrente disse: - como tu diz amém?
França respondeu-lhe: "Se o que disse for de Deus, amém, ele dará em dobro." Se o que disse foi do Diabo, nada como um amém para afugentar uma praga.".
E então, França passou a trabalhar no seu pequeno box de feira, do nascer ao pôr do sol, e muito! E, passou a fazer promoções, orçava os produtos num preço justo, sem usura, e nunca negou um “choro” no peso, e pra mais.

Dois anos depois, comprou o box da esquerda, em 10 prestações e deu ao seu filho de 18 anos pra cuidar,a gora com peixe salgado também. E, sempre deixava nos dois boxs os montinhos de camarão, sem olhar muito para eles, que era para pessoas que queriam "roubar".
França me disse, que eles têm fome, e que sabia o que era fome. Disse ainda que aqueles montinhos de camarões eram um pequeno pedaço do lucro que tinha tido, ou seja, já estavam pagos.
E que era sua forma de agradecer a Deus. Um tempo depois, seu filho tinha agora 13 anos, e chegou no seus boxs, após circular pela feira, dizendo-lhe: : "Pai, por onde eu passo na feira, os meninos de rua me reconhecem e dizem: "Ele é o filho do Sr. Bonzinho""

E o França ficou todo orgulhoso. Um belo dia o vendedor do lado, o que jogou-lhe uma praga, e era tido como rabugento e infeliz, o abordou com proposta de venda do box dele. França juntou todas as economias e comprou. “Raspei o tacho”, comprei o box de meu principal concorrente e dei de presente ao meu filho, agora que fazia 5 anos para ele cuidar, inovando com a venda de peixe fresco, pela primeira vez: tilápia, curimatã, traíra e cioba. E foi um sucesso. E, nos 3 boxes de feira dele, nunca faltou um montinho de camarão, disposto estrategicamente de bobeira, para matar a fome de quem precisa.
Então, contei-lhe que já sabia que eles eram especiais, pois que me sorriram na foto. Aí foi ele quem sorriu, um sorriso de quem faz a coisa certa e deixa seu legado no mundo.

Então, todo orgulhoso, chamou-me para aferir com ele o estoque, freezer a freezer. Senti-me como se adentrasse na tesouraria do Banco do Brasil. Ele mostrava os pintados, jaús, pirarucus que vinham de longe, e que só ele tinha, como se fossem seus tesouros.

Eu, bem emocionado, sabia que o amor tesouro não estava naqueles freezers, mas no coração daquele 
tão simples feirante de feira livre.
Que achou seu jeito de fazer a diferença nesse mundo, tornando-o melhor do que encontrou.
Todos temos esses montinhos de camarão para doar, de nossa própria vida, e que não nos farão falta.
Pode ser tanto em bens materiais, como no valor do nosso trabalho e serviço para os clientes, como em capital emocional que doamos aos outros, na forma de escuta, abraços, apoio e de um ombro amigo.
Seguindo para João Pessoa, percebi que a foto que fiz com ele não prestou, talvez por gordura de peixe na lente.
Mas, o aroma daquela alma perfumada invadiu meu ser, e se galvanizou nas meninas dos olhos de minha alma.
Obrigado França por existir!
Sim, antes que me esqueça:
França, eu também roubei alguns camarões, e estavam uma delícia, mesmo tendo sujado a lente com o que deles ficou em minhas mãos, não resisti, carne é fraca e tem fome de poesia.
Depois te pago França! Fica com Deus, aliás, Deus já está contigo.

2 comentários:

  1. Fantástico!! Quero deixar registrado, amigo: este texto me inspirou profundamente no dia de hoje!

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