Há de se ter tempo para deitar-se sobre flores. (Autor Ricardo de Faria Barros)


Passei por aquele trecho, à margem da movimentada BR 020 que corta o Distrito Federal, caminhando num ritmo quase de academia.
De longe fui vendo um tapete de flores no chão, lamentei não ter trazido o celular para documentar aquela colcha florida que a mãe natureza fez.
No outro dia já coloquei o tênis com o firme propósito de vê-las novamente. Guardei o celular no bolso do bermudão e disparei, torcendo que as flores ainda estivessem viçosas como no dia anterior.

Eu estava caminhando em direção a elas num dia bem reflexivo. Têm dias que acordamos assim, com arrotos pelas coisas a que temos acesso, que nos entristecem, e que são mal processadas em nosso coração.

Uma das coisas foi ter acolhido logo bem cedo o desabafo do Adalfran, o porteiro do prédio, sobre como ele se sente quando é tratado por alguns moradores que o humilham por ser simples, ou lhe ferem com posturas de discriminação racial e geográfica. Infelizmente tem gente assim.   

Dou mais uns passos e penso no que vi no jornal, sobre uma jovem que foi parada numa blitz, aqui em Brasília, e simulou que foi agredida, arranhando o rosto numa árvore, para complicar a vida dos guardas.

Dobro a esquina e penso noutra reportagem sobre os alunos de uma escola de Mariana-MG que rejeitaram os que foram transferidos para lá, oriundos de São Bento-MG, por terem perdido tudo: suas casas, quintais, parentes, amigos, brinquedos, cultura e até a sua cidade, vítimas da avalanche de lama. Tiveram que construir uma escola só para eles, pelo teor do Bullying que sofreram.

Também pensava em como pode uma pessoa atear fogo numa Creche?

Passando numa parada de ônibus, vi um jovenzinho amarrando os cardaços do sapato de uma senhorinha. Quanto amor envolvido.

Mais à frente, um outro caminhante respondeu ao meu bom dia, que de propósito dou a todos que por mim passam, com um sorriso lua cheia no rosto.

Vejo uma mulher com aqueles trecos redondos (bobes) na cabeça, varrendo a calçada da casa dela, de jardim florido, e de seu do interior da casinha sinto vindo um delicioso cheiro de café. Onde há aroma de café, calçada limpa e plantas há vida naquele lugar. 

Uma fila de crianças passa por mim, guiada por seus pais e cuidadores, em direção a uma escola. Cena comovente, todos falantes, bem arrumadinhos e com suas mochilas abarrotadas.

Vejo jovens com sacolas de roupa e alimentos, esperando que abram a porta do lar dos velhinhos Bezerra de Menezes, aqui de Sobradinho. Pensei, eles foram fazer uma doação, que lindo.

E de longe meu chão de pétalas se descortina, e o amanhecer acontece em meu viver. Faço umas tímidas fotos, olho para um lado, para o outro, e ouso deitar sobre aquela colcha de flores de ipê rosa.
Afinal, já estou na idade em que posso pagar mais micos, sem preocupação alguma com "aparências", tomar menos sopa e mais sorvete, e dar vexames por ainda acreditar em coisas ultrapassadas, como ternura e paz.

Então, deitei sobre as flores. E senti uma paz invadir meu coração. Creio que todo mundo um dia precisará fazer isso. Deixar a vergonha de lado, mandar todo mundo que observa às favas, ligar o "tou nem aí" e deitar-se sobre flores.

Deitado olhei para o céu azul, uma pintura aqui no DF, senti o vento roçar minha face, no nivelem que ele afaga a relva macia. Senti um pássaro cantando de feliz, ao ver-me interagindo com ele, naquela manhã.

Após uns minutos, ergui-me e vi que uma senhora, que também caminhava por aquele local, tinha parado para contemplar a cena.

Aí ela falou, "eu também quero". E deitou-se tentando fazer uma foto com seu celular, um self. Eu me ofereci para documentar a cena, e ela se ofereceu para me fotografar, nessa foto que ilustra esa crônica.

Ela me disse que mora há dez anos numa casa bem perto daquele pé de Ipê Rosa e que sempre quis deitar naquelas flores, e que ao me ver fazendo aquilo ela disse para si mesma: "é hoje!"".

Nos despedimos afetuosamente, cada um seguindo a sua rota caminheira.

E, no meu coração já não havia mais nenhuma presença dos arrotos sociais do início da manhã, pelas coisas que consumi, e agora era só esperança de tempos melhores.

Esperança nutrida por jovens solidários; por quem amarra os cardaços de uma anciã; por crianças alegres indo para escola;  pela vaidade dos bobes da mulher, dialogando com sua lida da casa; pela escuta sincera e disponível de um coração abatido e oprimido; pelas flores que me abraçaram como que a me dizer, somos maiores, melhores e mais abundantes do que tudo isso de ruim que existe na sociedade.

Voltei para casa com o coração em júbilo. Aquele travesseiro de tronco de ipê e cama de suas flores, renovaram meu espírito, e estou pronto para mais transformações em meu pensar e agir. Sim, é possível transformar realidades tão duras, com as quais convivemos, com nossa pequena ação diária, quase imperceptível, cujo resultado é enorme, na vida de quem ajudamos com nosso jeito de ser diferente. Aquele que vai no sentido contrário de tanto ódio, indiferença, egoismo e insensibilidade para com o outro.

Por isso precisamos de nossa cama de flores interior. Precisamos dessa parada diária para nos abastecer de bons sentimentos e de emoções positivas. Cada um que me ler deve ter seus próprios infinitos particulares, lugares que visitam, que em suas pétalas e flores nos deitamos, evocando ali os pensamentos mais nobres seu coração. E, ao de lar sairmos, nos sentimos refrescados e restaurados em nossa esperança e otimismo de existir.

A sua cama de flores não precisa ser real. Pode ser deitar juntinho da pessoa amada, de conchinha. Pode ser lembrar daquele piquenique. Pode ser fechar os olhos e sentir-se dentro de uma cabaninha de amor. Pode ser ouvir a música de um filme tão lindo como Cinema Paradiso. Pode ser abrir a Bíblia e rezar diariamente o Salamo 91, ou algumas Salve Rainhas por pessoas queridas. Pode ser contemplar o sol se pondo, ou tentar ouvir o inaudível: como alegres grilos que defendem, perante sisudas formigas, que o amanhã será melhor, e que isso que estão passando hoje, essa seca sufocante e inclemente, também passará. 

Precisamos lustrar nosso espírito, periodicamente. Precisamos cultivar tempos eternidade, para nós mesmos.  Precisamos elevar nossos pensamentos, ampliar nossa percepção, expandir as fronteiras do pensamento levando-os também ao bom, o belo e virtuoso, que convive junto com o mau, o feio e o sem virtude. Que muitas vezes estão à beira de uma movimentada BR, ou bem perto de casa, e que por dez anos nunca nos permitimos deitar nele, ou parar para fotografá-lo, por não ser percebido, frente às aflições e preocupações que fecham o foco de nosso olhar, apenas para o que deu errado ou apresenta riscos de dar.

Encontrar a paz num cotidiano de tanta dor, vindo das coisas a que temos acesso, e que nos chegam qual dardos envenenados, é subverter a ordem reinante, instalando nela também as cenas do contraditório, que nega o discurso comum, de que as coisas não tem mais jeito e que humanidade como um todo está perdida.

Não acredite nisso. Deite-se no seu colchão de flroes, renove seu espírito e transformai o que está em teu poder e controle de transformar. 

E, continue a dar seu melhor bom dia, mesmo que nada receba em troca. Eles não lhe mudarão, você nãos e tornará o que não quer, pelo menos isso!  E, continuar a dar o seu melhor bom dia já pode ser considerado uma vitória, nos tempos atuais de tão pouca amorosidade.

 "Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito. Romanos 12,2






2 comentários:

  1. Sensacional. Reverter a ordem do negativo dominante em nossa sociedade é, sobretudo, um ato revolucionário! Viva a ousadia de ser feliz!

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