O Arraiá do VIHIVER.




Estava escrito, aquele São João seria diferente.
De 1994 a 1998 fui fundador e presidente de uma ONG que cuidava de pessoas com HIV-Aids.
Nela, exercia a minha melhor porção, a de voluntário. Junto com ex-mulher e filhos.
Num destes anos, era época de São João, e os voluntários da ONG - Grupo de Apoio à Vida (GAV), estavam cheios de idéias. 
Uma delas fazer o primeiro São João de pessoas vivendo com Aids e seus familiares.
Seria uma noite de folguedos.
Não falaríamos de AZT, nem de retrovírus, nem tão pouco dos inibidores da protease. 

Aquela deveria ser uma confraternização junina para ficar na história. 
Seria o arraiá da vida . O Arraiá do VHIVER.

Pensamos nos mínimos detalhes: convidar os enfermeiros do HUAC (ala A e B), comprar lenha para fogueira, fazer comida de milho, um marcador para a quadrilha...

Dias antes, como que a testar nossa capacidade de resistência emocional, dão entrada no Hospital Universitário (HUAC) dois membros do GAV.

Nossa mascote - Camila 2 meses, para qual já tínhamos feito um lindo vestido de chita (próprio para a ocasião), internou-se no HUAC com infecção generalizada.  A.M(28) que era o responsável pela confecção do pudim de milho (uma delícia! só de pensar) sentiu-se mal e foi internado às pressas com pneumonia. 
Os dias foram de apreensão. Camila estava no balão de oxigênio, na UTI Pediátrica. 
A. M vinha apresentando melhoras mais ainda sob doses severas de antibióticos.

Aquela sexta nos marcou. 
Vendo os olhos sorridentes, apesar dos tubos, de Camila - totalmente impossibilitada de ter alta , e A. M que nos prometeu um outro pudim de milho ," quem sabe no São Pedro"... tocamos em frente o projeto. 

Será que aqueles tão marcados por esta doença viriam?
E o medo da chuva, com suas conseqüentes infecções? 
Nunca tínhamos conseguir congregar tantos portadores, muitos só tínhamos acesso quando íamos deixar uma cesta básica ou medicamentos. Aquela deveria ser uma ocasião diferente.
Seria um brado e clamor à vida. Para muitos um reencontro depois de tantos meses, e até anos de amargura. Era preciso, concretamente, mostrar que ainda é possível ser feliz , mesmo com o vírus HIV , que é urgente se viver a soropositividade. 
Que é possível dançar um forró, uma quadrilha, soltar uns fogos, tomar uns guaranás.

Aquela seria uma noite na qual muitos poderiam sair com uma dose do que o AZT não produz:
alegria de viver.

Finalmente chega o dia. Logo cedo o local está em polvorosa. São bandeirolas. Lenha para fogueira. Últimos contatos.

Passamos o dia , em mutirão, preparando a festa.

E à noite, fez-se a luz!
Aqueles a quem nossos olhos condenaram aos túmulos estavam todos ali. 
Risonhos, alegres, muitos dançavam. 
A I D S - palavra proibida!
A palavra permitida era alegria e esperança.

Que noite! Noite de encontro, noite de comunhão.

O forró comeu no centro. "Tareco e mariola neles!" .

No fundo d`alma ainda batia uma saudade danada de Camila e A. M .

E como era noite de folguedos de de repente fez a luz. Chega a festa, a Jovem S.M(25) , oriunda da Bahia para onde tinha ido há 6 meses sem nos dá notícias. Um voluntário ao passar em sua rua , para buscar outro portador, percebe um taxi em sua casa. É que ela estava chegando da rodoviária naquele momento. Foi só deixar o taxi e entrar no carro e vim para o Arraiá.

Não acreditávamos no que víamos. Estaríamos já bêbados?

Ficamos como bobos, não sabíamos se riamos ou chorávamos. Nos abraçamos e eram tantas palavras, contidas num soluço ,que mal podíamos nos entender. Compreendemos ,naquele instante mágico ,o abraço do "filho pródigo" - o abraço do reencontro. Ela não sabia a surpresa que lhe aguardava. Seu sonho era conhecer outras jovens , HIV + , de sua idade com quem pudesse partilhar sua experiência. Naquela noite, estavam presentes no Arraiá, mais 4 jovens entre 23 e 26, todas HIV + .

E quanta esperança cada uma depositou na outra quando se conheceram. Era como que dissessem - Puxa, não só foi a mim que este vírus contaminou, vamos juntas enfrentá-lo , então!

Era alegria demais numa só noite.

Estava escrito, resistirão!
íamos.

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