Simplicidade



Um colega de trabalho relatou a cena de sua filha Camila (09)
ao chegar do colégio toda sorridente. 

- Pai, vou participar da peça no colégio 

- É, Camila, que bom! E qual será seu papel? 

- Multidão! 

Não consegui dormi nesta noite. Que simplicidade daquela garota. Que alegria contagiante e imaculada. Camila seria multidão. Seria uma figurante numa cena de poucos minutos.

Na minha lógica maneira de pensar, não cabia a felicidade de Camila ao ser chamada para ser "multidão".

É que adulto pesa, pondera, classifica. Adulto aprende palavras como maior, menor, melhor, pior. Criança, não! Para elas o importante é estar na brincadeira. Elas não atingiram a idade da vaidade. Tudo é festa desde que elas participem. Não importa cargos, status-quo. Tanto faz brincar nas areias da praia, com um garoto dos morros, ou com um burguesinho de classe média. Na hora que elas, as crianças, encontram-se,  impera sob elas o reinado da fantasia. 

E a fantasia destrói muros, constrói pontes e afina o ser para que toque uma canção de conjunto, uma canção de orquestra. 



- “Tio, vou ser multidão!" 

Ah, Camila, como tu me ensinou naquela noite. Vi em teus olhos faiscantes a importância que tu própria atribuías a tua missão. 

Tu eras, então, inacessível a comentários dos outros. Tinha sido linda esta descoberta de teu ser. Não importava o papel na peça, o importante era estar participando, junto com o grupo, do evento. Não precisavas de avaliação de terceiros, sobre se era importante ou não a ponta que fazias para ti era a ponta mais importante do mundo, pois era única. Agente às vezes começa a construir uma imagem nossa pelo que os outros vão nos fornecendo de feedbacks. Chega a tal ponto que agente dipirona (endoida) e perde o nosso próprio referencial. Afinal, agente se acostuma e se condiciona a atribuir nossas tristezas, mazelas e limites aos outros. 

Estamos sempre a implorar afagos, carinhos e atenção. Camila não! 

Ela encontrou-se, na pureza da multidão que ela ajudava a representar. O espelho destrói o sentimento de pertença e de valor que temos. É um espelho produzido pelos ditames da moda, da mídia, do corpo politicamente correto ou do agir. Ele chega a ser cruel. Precisamos evocar a pequena Camila, nestas horas, e lembrar que não existe para minha felicidade algo mais precioso do que o amor que sinto pelas minhas espinhas, pela minha barriga, pela minha barba branca, pelos limites que tenho. De que não existe melhor estado de harmonia do que a compreensão de que sou importante. De que sou, mesmo fazendo pontas muitas das vezes, elo fundamental na manutenção da vida. 

É tão bom quando agente vê alguém que é coerente. Que se assume. Que gosta dele do jeito que é. Que não precisa se fantasiar, de parecido com ou outros, para ser aceito. Como é bom ser original num mundo cada vez mais massificado e cheio de protótipos de pseudo-homens. Como é bom poder ousar um novo mundo. Um novo relacionar-se. É destas coisas simples, desta pureza de espírito que se produzem grandes 

transformações. Do jeito que as coisas estão, chegará o dia em que uma simples declaração de amor será entendido como algo "humanamente inferior". Neste meio idiotizado, televisicondicionante, quem ousar ser diferente será atropelado. E aí já não restará mais sobre a face da terra homens; plenos, criativos, originais. Existirão robôs, ovelhas mansas, alienadas e dóceis. 

Por isso, é urgente aprender com Camila a ser feliz. Feliz como a água que se encontra com o mar. Feliz como aquele que se olha no espelho e diz: “Taí, gostei!" 

A ausência de vaidade em Camila, o sentir-se parte de um processo, sua visão do todo, da peça como um todo é para nós uma grande lição e um grande desafio. 










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