O Papagaio de Inácio Tosse



Quem já teve a oportunidade de conversar com este humilde casal, que há 6 anos enfrenta a AIDS, sabe que eles são a expressão concreta e visível da palavra Esperança.

Inácio e Cida fazem parte da historia do Grupo de Apoio à Vida – GAV ( luta pela defesa de portadores do HIV/AIDs na Paraíba). 

Nós nos conhecemos já nas primeiras reuniões da fundação (Mar/94).

Não deu para não se apaixonar por eles, à primeira vista. Vivemos juntos muitas emoções.

Foram muitos portadores que levamos a sua casinha humilde e chegando lá, sentido-se derrotados e angustiados, saíram como que ressuscitados para a vida. 

Andamos intrigados tentando descobrir de onde vem aquela alegria, paz e esperança que deles emanam. 

Alguns do GAV acreditam que é uma droga misteriosa que ele (Inácio) coloca no café. Ou será o bolo que Cida faz que tem ervas mágicas? O fato é que nenhum de nós visita Inácio e Cida e sai do mesmo jeito. 

Naquela casinha de 20 m2, onde nos sentamos no quintal e tomamos café, fala-se das coisas simples da vida e teima-se em acreditar... 

Naquele quintal obraram-se milagres. 

Então chega a noticia impactante no GAV de que Inácio está com bolhas nas costas e sente umas pontadas. 

Ergo as sobrancelhas. E procuro disfarçar minha preocupação. Bolhas nas costas e pontadas finas?

- É, foi o que vimos e o que ele nos relatou.

Peço que uma equipe de voluntários se dirija a sua residência para tentar sua internação.

"Bolhas nas costas e pontadas finas" pode ser sintomas de "Cobreiro" ou Herpes Zoster. É uma infecção séria que tem de ser tratada com vigor e de forma imediata.

A médica de plantão não o interna. Alega que ele é paciente de Dr. XXXX e que só este pode autorizar a internação. Sabendo da evolução rápida e cruel do "cobreiro", em pacientes imunodeprimidos, ficamos indignados. É o velho drama de ser pobre, com AIDS, e precisar de assistência médica.

Não há leitos disponíveis...

Em 6 anos de GAV é só o que escutamos. Alguns desses, "não há leitos", batem com força no GAV pois atingem portadores-militantes que também, de forma consciente e comprometida, estão na causa Anti-Aids, fazendo aconselhamento e dando forças a outros companheiros. 

É o caso de Inácio.

Sabemos portanto, da repercussão na comunidade de soropositivos, de um leito negado a um Inácio. Não que a outros não repercuta. É que Inácio é um líder natural de muitos companheiros soropositivos. Eles são tidos como que os padrinhos e madrinhas de portadores carentes que com eles se cruzaram nos ambulatórios e corredores de hospital, nesses 6 anos que eles estão com a doença. 

Foi na casa de Inácio e Cida que o Casal M.L e C.L redescobriu a paz, após o diagnóstico da doença.

Foi na casa de Inácio e Cida que S.B , jovem infectada de apenas 19 anos , comendo um bolo gostoso, servido e feito por Cida voltou a sorrir.

Foi na Casa de Inácio e Cida que E.B e sua esposa, quando ambos descobriram-se infectados, foram buscar sustento e esperança para resistir.

Finalmente, vaga um leito e Inácio se interna. Não tenho coragem de visitá-lo. Não agüento vê-lo sofrendo as dores incríveis que o "cobreiro provoca". Acompanho sua saga por outros voluntários.

Tento superar o medo, medo que pensei que estava definitivamente sepultado, porem que com Inácio me deixa mais uma vez prostrado. É medo que imobiliza, que remete a perdas. 

Senti este pânico com Camila (órfã de 3 meses adotada pelo GAV), agora sinto com Inácio.

Inácio é muito mais que um amigo. É um compadre. Em dezembro/94 realizamos um sonho antigo do casal que era casar na igreja. Arranjamos até vestido de noiva para a Cida que estava linda, do alto de seus 48 anos.
Fui o padrinho de Inácio. Lembro o festão que fizemos em sua humilde residência após o casório. Tomamos umas boas cervejas. Conseguimos até que a esposa de M.L deixasse que ele nos acompanhasse numas doses: "um copinho, só por esta noite, não vai estragar o efeito do AZT... "

Dez dias após sua internação, uma equipe do GAV aparece em nossa residência com uma receita.

- Pra quem compraremos estes remédios ?

- Pro Inácio

- Ele já tá em casa?

- Sim , nós estamos voltando de lá...

Quando o pessoal saiu. Entrei no quarto e sozinho não contive as lágrimas.

Inácio estava de novo no seu lar. Naquele local que passamos a freqüentar como um templo - Um templo de resistência e esperança. Fui rapidamente comprar os remédios prescritos. Bato em sua porta. Lá estão eles...

-Padrinho, olha só o que este tal de cobreiro fez em minhas costas.

As chagas ainda estão lá, porém, já estão cicatrizadas.

A conversa segue animada. Ensinamos o casal a utilizar os remédios. Eles nos dizem que estão alimentando um sonho de passarem Natal e Ano Novo com os filhos em São Paulo. Eles dizem que já juntaram o dinheiro de ida e que falta pouco para "inteirar" o da volta.
Então como que num passe de mágica descobrimos o segredo daquele casal.

É que eles sonham juntos.

- Sonharam juntos com a operação no ouvido de Inácio, para debelar uma infecção resistente, e aconteceu.
- Sonharam com a reforma de sua casa de taipa, e aconteceu.
- Sonharam com o casório na Igreja, e aconteceu.
- Sonham agora, com a ida a São Paulo e acontecerá .
- Sonham com um remédio mais forte que o AZT... (sonho realizado 4 anos depois deste texto).
- Sonham, quando da volta de SP, construírem uma “latada” em cima da lavanderia: "para quando a Cida estiver lavando roupa não pegar sol ", e acontecerá. 

Percebemos o porquê de tanta alegria, esperança e paz que reina naquele lar.

É que aquele casal aprendeu a sonhar juntos. E sonho que se sonha junto vira realidade. E sonho é o alimento da vida. Sem sonhos pra que viver? Sem sonhos desistimos!

Cida, então nos faz uma revelação: o que mais a transtornara, nestes 10 dias que ficou sem seu "nêgo", foi o papagaio. A gente não se continha em risos e pedimos que a Cida explicasse melhor. Cida então nos disse que o papagaio de Inácio aprendeu a tossir como o dono.

E que, durante estes dias, foram muitas as madrugadas que ela acordou ouvindo tosse, e pensava que era seu amado que chegara, e aí percebia que era o papagaio e desatava a chorar.

Na verdade, não era Inácio que tossia, era seu papagaio que com a convivência com ele, e sua tosse costumeira nas madrugadas, aprendeu a imitar o dono.

Nas lágrimas de Cida que ao ouvi-lo evocava o seu marido,  e chorava, toda grandiosidade do amor.

Nos sonhos daquele simples casal, que Deus os tenha, toda a esperança de uma vida melhor!

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