Sábias desconstruções. (Autor Ricardim)


Quando chegamos ao trabalho percebemos que o vidro que dividia ambientes, entre as telefonistas e a sala de recepção, houvera se vidro estilhaçado.
A notícia se espalhou e curiosos vieram conferir o ocorrido.
O que acontecera após as 20hrs? Final do turno do 4. andar.
Muitos tocavam no vidro que, seguro por algo em seu interior, não caíra no chão.
Uns chegavam perto e diziam que foi a porta que bateu nele.
Outros, mais desconfiados, pensavam em sabotagem.
Alguns, da área jurídica, num tiro acidental.
Alguns, dos boêmios, uma rolha.
Enamorados, pensavam num encostão.
Místicos desvairados, no vento da morte, que nas casas do sertão entra quebrando os vidros.
Quanto a mim, defini o que aconteceu de uma forma prosaica. Foi um milagre!
Um milagre daqueles que nos traz bons presságios, sinais ou revelações positivas, e cheias de renovo.
O vidro não se quebrou. Trincou, mas manteve-se de pé e cumprindo seu papel de divisória, de forma mais bonita ainda.
Esse era o sinal. Nós trinca, mas num quebra, e ficamos mais forte ainda, a cada pancada.
Arranjei um banquinho e comecei a fazer foto do pessoal do andar, que vinham ver a bela estética de pano de fundo que o vidro estilhaçado proporcionou.
Uma verdadeira obra de arte moderna.
Chamei até o Presidente para posar, tendo-lhe ao fundo. .
Alguns "capa-pretas' que chegavam para reuniões de Comitês, ou Conselhos, admiravam-se do reticulado piramidal que originara-se da destruição interna do vidro.
Passando a mão, por ambas as faces do vidro, não havia nenhuma anormalidade. Nenhuma ranhura, desnível, furo ou caco de vidro saliente.
Quantas coisa em nossa vida foram assim?
Na hora em que aconteceram tudo era desconexo, depois passamos a ver a ordem no caos.
Lembro da saga de um amigo querido. Recentemente, ele descobriu que tinha um tumor na bexiga.
Com a notícia, difícil de digerir ele se desconstruiu. Aquebrantou-se em mil pedaços.
Pânico, medo, incertezas quanto ao diagnóstico, prognóstico, cirurgia e intervenções.
Mas, dia a dia, enfrentando seu tumor, que se revelara maligno, ele foi se refazendo como pessoa.
Se reconstruindo, se refazendo,nascia ali um novo homem.
Que, após o choque que lhe aquebrantou, humildemente aprendeu a resistir, a lutar, um dia de cada vez, se reestruturando, qual meu painel do milagre.
Tornando-se melhor e mais forte, a cada caco que recolhia, dele espalhado pelo chão de seu viver.
O trauma da notícia e a angústia do enfrentamento da doença produziram nele sequelas, mas não o destruíram emocionalmente.
Paradoxalmente, luta à luta, ele ficou mais forte ainda. Mais belo.
Qual meu painel estilhaçado.
Tantos outros que me leem, e eu próprio, nos reconstruímos, após grandes reveses da vida.
Seja um casamento precipitado por uma gravidez, seja a mudança de estado por motivo de trabalho, seja a dor do desamor de uma desilusão amorosa.
Quantos coisas quebraram nossa estrutura interior, nos alquebraram, e delas saímos mais belos?
Coisas, que aos olhos mais cruéis poderiam nos destruir, mas ao contrário, a partir delas nos reinventamos, não mais os mesmos, apenas melhores.
Todos os dias contemplo essa obra de arte, que poderia chamar-se "Esperança Resiliente".
Chego bem próximo e vejo os arranjos vitrais que se fizeram do emaranhado de cortes e sobrecortes entrecortados, de mil formas reticuladas e piramidais.
Será esse painel uma metáfora da vida que por ela vale a pena ser vivida.
Uma metáfora daquele sentido e coragem de sobreviventes.
Que representa pessoas que suportam as tensões do viver, podem até por fora aparentarem estarem estilhaçadas, mas, conhecendo-as mais de perto, veremos que - tal o painel de vidro, elas não estão com fendas, feridas abertas ou nada em sua extremidade que possam nos ferir.
Absorveram os choques da vida, tornado-se melhores, mais belas e sábias.
São como esse painel de vidro, que desafiou a força bruta que lhe agrediu, fazendo dela, e com ela, arte.
Penso, e creio firmemente, que nosso bom Deus pode ser essa força que nos dá sentido, que nos cola por dentro, quando tudo em nosso exterior desmorona.
Ele faz isso com a cola da misericórdia e a pressão do amor.
Ele não nos abandona. Lembram de Isaías 49,15?
"Ainda se tua mãe lhe abandonasse, não te abandonarei jamais."
O amor nos redime.
E, após os traumas da vida, Ele vai nos colando, soldando, caco a caco, numa outra composição. Gerando: da dor, alívio. Da morte, vida.
Se você se sente como quem está despedaçado, todo fragmentado, violentado em sua dignidade, orgulho e amor próprio.
Se sente-se desiludido, cansado e com vontade de desistir, ao não se ver mais no espelho como um dia foi.
Mire-se nessa foto. Veja a beleza que emana dos cristais, que se acomodaram e se adaptaram a um processo de sofrer pelos quais passaram, saindo mais fortes de tudo que lhes aconteceu.
Haverá coisas que viveremos que nos permitirão desconstruir-nos.
Aquebrantarmos. Alterar rotas, planos de ação, projetos e sonhos.
Digo-lhes, faz parte. Não desanime, mesmo ferido, dentro de voc~e tem uma força de superação que só quem já sobreviveu sentiu, eu já, e garanto-lhe amanhã será melhor.
E você ficará mais belo ainda, com tudo que aprendeu nessa sua reconstrução do ser.
É queridos, quando buscamos fortemente servir, no lugar de ser servido. Amar, no lugar de ser amado. Doar-se, no lugar de receber doação. Reconhecer, no lugar de ser reconhecido. Continuar, no lugar de desistir. Acreditar, no lugar de desconfiar. Perdoar, no lugar de ser perdoado, aprendemos a colar os cacos e recomeçar. .
Sendo presença de Deus por aqui, e fazendo nossa parte em colar os cacos de nosso existir, ajudando a colar os cacos do existir do outro, e dessa sociedade tão perversa em que vivemos.
Quem sabe não podemos ser milagre, qual minha definição do que ocorreu com o painel, para tantos despedaçados por aí, com os quais cruzarmos? Milagre de renovação, restauração, renovo e recomeço.

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