Ensinemos a honra de saber perder.



A aula transcorria de forma satisfatória. Alunos sedentos pelo saber, construindo juntos o conhecimento. Adoro ser educador, e, embora cansativo, destino duas noites da semana às aulas de pós-graduação. São disciplinas do tema gestão de pessoas.
Essa, dessa noite, chama-se Desenvolvimento Profissional e Qualidade de Vida no Trabalho.
Logo no início dos cursos faço um contrato com meus alunos:
Regra 1: “Serão nove encontros e não farei chamada. Mas, para vir pra aula tem que trazer uma reflexão pessoal, sem ser Ctrl C + Ctrl V de um texto do Oráculo Google, do texto que será debatido na noite.”
E eles terão que ler e defender sua reflexão. Pode ser um único parágrafo de reflexão, mas exijo que seja da autoria dos alunos. Desenvolvo neles o gosto do pensar, de produzir conhecimentos. Sem essa reflexão os libero das aulas. Não precisa vir. Para minha surpresa o método funciona. Todos comparecem às aulas, até quando sou premiado pelas Coordenações com as aulas da sexta à noite.
Outra coisa regra:
“Todos já estão pré-aprovados. Mas, honrem a cada encontro a sua aprovação. Na minha disciplina você só se reprova se pedir. Mas, façam por merecer sua aprovação, conquistando-a a cada aula.”
Corta a cena, e volta pra minha aula dessa noite. Enquanto explico e debato com os alunos os avanços do modelo de Watson - de Qualidade de Vida, em relação aos modelos baseados apenas na Ergonomia, um aluno acena desesperadamente pela janelinha, lá de fora no corredor.
Interrompo a aula e vou lá fora, ver de que se trata.
Ele alega-me que fora aluno meu no semestre anterior. Francamente não me lembro.
E que faltara a minha aula final, aquela que peço como avaliação final, numa espécie de monografia, que meus alunos escrevam tudo que aprenderam nas aulas.
Ele diz que falou com o Coordenador do curso, que “delegou” para mim a decisão de aceitá-lo ou não, para fazer somente a prova, uma vez que faltou aos 8 encontros anteriores desse semestre. Não acredito que o coordenador disse isso. Acho que é um "migué".
Senti-me apunhalado em minha dignidade de educador.
O aluno não veio fazer a avaliação final, no último semestre. Pediu para ser reprovado e eu – mesmo contrariando a meus princípios, o atendi.
Nem tampouco nos dias que se sucederam à avaliação final me procurou para tentar um acordo. Adoro fazer acordos. Simplesmente desapareceu.
Agora, ele aparece com a cara lavada e diz que quer fazer somente a prova da próxima quinta. Eu mereço. Há mereço!
Ou seja, não participou de nenhum debate, não entregou nenhum trabalho, e quer trazer sua participação anterior como bônus e sentar na janelinha do ônibus de uma nova turma, que nem conhece.
Fiquei imaginando que tipo de prova ele fará. Ele pensa que dou aulas por fichas amareladas de tanto uso. Coitado.
Não, não vou submetê-lo a esse vexame. Até porquê, em cada novo ciclo mudo tudo. Encontro novos textos, casos, referências, atualizo a ementa da disciplina.
Ou seja, a cada semestre minhas aulas mudam, renovam-se e o fato dele me dizer que tem as anteriores não o salvará do fiasco.
Tentei argumentar nesse sentido. Mas ele olhava para mim com a expressão de cri cri cri.
“E eu com isso!”
“Problema é seu professor, foi o que o coordenador disse.”
Lia em sua mente, em seu corpo.
Mas, o que me incomodou, e bastante, era sua certeza da impunidade – típica de um país que ainda não é uma nação.
A certeza que ele aparentava de que tudo estaria tudo certo comigo, que ele venceria a ética.
Que seria mole.
Esse jovem não aprendeu a perder com honra, ética e dignidade.
Faltaram essas lições nos bancos escolares que curso na escola da vida.
Acha que merece fazer a prova, por merecer.
Não tem consciência crítica alguma da situação em que se meteu.
Acha que pode porque pode, e por assim achar, manipula todos para em sua fantasia de onipotência.
Quinta passada outro jovem me abordou chateado. Havíamos adiado por 4 meses o processo seletivo que ele concorreria, de novembro para março.
E ele não se conformava.
Falei para ele que a razão seria a duplicação das vagas a disponíveis.
Ele não aceitou minhas considerações. Mostrei-lhe a matemática: em novembro eu teria a oferecer 100 vagas para 1.000 concorrentes. Em março, 200 para 1300 concorrentes, aumentando suas chances de 10% para 15,38%.
Ao ouvir meus argumentos soltou um chiste, uma ironia nada fina, “então espere logo dez anos, aí terá mais vagas ainda”.
Ele queria o dele agora, em novembro...
Tudo agora, e pra já e ao mesmo tempo, sem abrir mão de nada, sem renunciar a nada.
Sem perder nada, nem que sejam três meses de espera.
Ele não tem tempo a esperar, outra característica da cultura dos tempos atuais.
Ele não tem nenhuma solidariedade com os 300 candidatos que estarão aptos a concorrerem nos próximos quatro meses, mesmo que objetivamente suas chances futuras aumentem em 50%.
Essa é uma cultura perversa que estamos criando.
Ninguém sabe perder nada com dignidade, com honra.

Narcisismo;

Individualidade;

egoísmo e

ganância; formam os quatro pilares de uma perversa estrutura social que estamos a construir, seja em qualquer dimensão da humanidade: social, ambiental, econômica, organizacional e política; e pasmem, em até algumas agremiações ditas espirituais.
Ensinemos nossos jovens a perderem com honra, altivez, dignidade ou estaremos criando uma sociedade que não saberá mais conviver consigo mesma.
Que não saberá mais perder um amor, e o perseguirá e o agredirá por isso.
Que não saberá mais perder uns minutos, enquanto o sinal abre, e sairá xingando o carro da frente.
Que não saberá mais perder tempo com o outro, “pois tempo é dinheiro”.
Uma sociedade de pseudo-vencedores, na qual todos, na verdade, são os verdadeiros perdedores.
Todo mundo se acha merecedor da fama, sucesso, posição, sem precisar ralar, se esforçar, lutar.
Como num jogo de vídeo-game, acham que podem superar as dificuldades da vida por atalhos, dicas e macetes, pulando as mais ásperas e duras de enfrentar.
Ou, quando a situação aperta para valer, deletando relacionamentos, coisificando pessoas e mercantilizando sentimentos.
Isso sem falar nos que se entopem de drogas lícitas ou ilícitas pelo simples fato de não terem sido ensinados a lidar com frustrações, perdas e angústias.
Aliás, nem chorar em velório se chora mais.
Agora ser forte é se dopar para aparentar uma fachada de calma, e dá sinal de “grandeza emocional” na hora da dor mais cruel.
Afinal, os choros e alaridos são tidos como sinais de fraqueza na sociedade do ter, prazer e poder.
Se não o cara não passa num processo seletivo culpa a prova, a banca entrevistadora, o tempo... nunca faz uma autocrítica, nunca desenvolve seu autoconhecimento e aprende com o fato.
Se a relação a dois está um caos, culpa o outro.
Se os filhos não o procuram mais, culpa os filhos.
Enquanto existir uma culpa para ser terceirizada ele assim o faz.
Transfere responsabilidades que são suas, para os outros, numa boa, sem revelar nenhum tipo de remorso, vergonha ou pudor.
No meu caso: eu sou o culpado do aluno ter perdido a disciplina.
Não aprendem com os sopapos que tomam da vida.
Aprender para que?
São eles os errados, os outros, o sistema, a empresa, o vizinho, eu não... eu já nasci merecendo todos os brilhos. Papai e mamãe me disseram isso.
Perversa escola da vida que só se preocupa em ensinar a ganhar a qualquer preço, utilizando-se de qualquer estratégia, ética ou não.
Outro dia vi uma jovem revoltada, pois comprou sua aprovação no vestibular de Medicina e ao ir se matricular percebeu que a “operadora” lhe tinha enganado.
Ela ligou para a operadora e exigiu seus direitos, reclamando da prestação de serviços que fora rompida.
Só faltou dizer que iria ao Procon.
É a ética da individualidade, para a qual, todas as regras sociais devem se curvar.
Se é o meu querer que está ameaçado que se danem os outros, as normas, os valores...
Eu, eu, eu...
Escravos do espelho, poderosos, ferozes em subir e em ganharem a qualquer custo que os rebentos dessa sociedade vão suscitar um esforço hercúleo das instituições para eles se adaptem, uma vez que foram criados para vencer, para tomar, para acumular e nunca dividir, cooperar, e até perder. Perdas necessárias.
Infelizes no amor. Imaturos como pais. Apáticos como cidadãos. Infelizes no trabalho. Sem amigos verdadeiros. Sem nenhum “se mancol” nos atos que vão fazendo em seu viver.
Vão criando seu próprio infinito particular no qual só eles mesmos sobreviverão.
Triste solidão de quem não aprendeu a perder, a sofrer e a chorar. Como bem disse o poetinha:
“Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair. Pra que somar se a gente pode dividir.
Eu francamente já não quero nem saber. De quem não vai porque tem medo de sofrer.”
Ensinemos nossos jovens a perderem com honra e dignidade, pois a vida não é feita de vitórias, e sim das batalhas por elas travadas.
A felicidade não é o ponto de chegada, é o caminho para lá!
Vencer ou perder são consequências, aliás, como diz uma outra canção:
“Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar”.
Não caro jovem. Comigo não.
Se poderei ser pedagógico para você, negarei o provimento de tua ação.
Ainda mais numa pós de gestão de pessoas cujo princípio imaterial, e inegociável, deve ser a ética nos relacionamentos.
Não caro jovem, se for preciso serei eu quem sairá, mas comigo tu não chegará na janelinha sem fazer esforço.
Nessa vida, temos que ralar para não criar gorduras e pelancas, não as que uma boa academia, alimentação e disciplina tiram, mas as da alma!
Essas só os valores serão capazes de combatê-las!
Ensinemos nossos jovens a perderem com “catiguria”!
O futuro da humanidade agradecerá.

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