Os Sons da Visão


Na recepção do Centro Cirúrgico Oftalmológico, pessoas silenciosas.
Uma pergunta-me: é sua primeira vez?
Afirmei positivamente.
Disse-lhe que já houvera feito intervenções cardíacas importantes, e que nunca estivera tão temeroso. Afinal, iam mexer em meus olhos.
A vista cansada atrapalhava-me de ver perto, de ver o monitor, as letras da Bíblia ou de uma bula, remédios para alma e corpo.
No recinto todos que atendiam seguiam com procedimentos padrões. Para eles, dever ser uma rotina diária.
Ligam o modo automático e trabalham, como se para seus clientes aquela intervenção cirúrgica nos olhos também fosse rotina.
Chega a minha vez. Despeço-me de meus óculos, agradecido, pelo que me ajudaram.
Coração disparado. Deito no leito cirúrgico e sinto que agora não tem retorno. Luzes verdes, vermelhas, brancas, de todos os tipos são lançadas sobre minha córnea.
Entre uma e outra, jatos de colírio a inundam. Afogada a visão aguarda - tal qual o para-brisa do carro, o seu amado limpador – que em pálpebras se debatem querendo ajudá-las. Contudo, presas que estão desistem.
Uma luz diferente se aproxima. Pela a tensão e o silêncio, abruptamente ocasionados, sinto que é o laser.
Um cheiro ruim de carne queimada, ruim porque é a minha, invade o recinto. Sinto ânsias de vômito.
Mais colírios, jatos de água, e acabou. Foram menos de 10 minutos. Sai para a sala de recuperação e meu nevo vagal dá sinais de vida.
Tome sensação de morte. Lá vou eu dar vexame novamente. A sensação é de desmaio, de perda de energia.
Peço socorro e uma enfermeira me coloca na posição de cabeça pra baixo. Lentamente o sangue vem voltando, a razão não.
Em flashes lembro-me de meu pente sem dentes, deixado na recepção da clínica e o olhar de espanto e riso das atendentes. Envolto na sensação de desmaio vem à mente uma mãe que já foi protagonista de uma de minhas crônicas, que a vi numa rodoviária de João Pessoa.
Era perto da meia noite, ela ajeitava seus três filhos para dormirem junto dela, esperando possivelmente um Itapemirim para São Paulo. Do alto de sua pobreza, antes de dormir, levantou-se e penteou os cabelos de seus três filhos, todos miseráveis como ela.
Quanto amor, num único gesto possível de urbanidade que um pente proporcionou.
Até hoje pentear meus cabelos evoca a dignidade daquela mãe.
Ando sempre com um pente tosco no bolso.
A homenageio com isso. Coisas do Ricardim.
Volto à realidade da sala de recuperação. Nem um som. Diferente das UTIs que frequentei.
Falta a música dos monitores.
No silêncio os estertores de almas em soluços rompem as barreiras de nossa consciência e vêm nos iluminar.
Ofuscado por tanta luz lembrei que para ver de perto precisamos queimar na própria carne.
É mais fácil olhar ao longe, os outros, ou ao nosso futuro remoto- cheio de fantasias e adiamentos de decisões.
Ver de perto, aquele que nos ajuda, nos ama, nos incentiva vai ficando difícil com o passar do tempo.
Vai caindo na rotina, na banalidade, na indiferença.

“Os olhos opacos da indiferença”, como diz o poeta.

Já olhar de longe, do ponto de vista existencial e não óptico, é mais fácil.

Exige menos entrega, renúncia e postura transformadora.

É mais passivo e imanente, afinal, está longe.

Olhar ao longe nos dá tempo de empurrar nossa vida pra debaixo do tapete da realidade, anestesiando nosso vir-a-ser.

Agora, quando é de perto que a coisa acontece, vixe Maria!

Quando é ali, pertinho, é na carne que sentimos. Pensem num luto pela morte de um parente amado, por exemplo. Ou numa decepção amorosa. Ou até numa crise no emprego e até de sentido e propósito de vida.
São dores que queimam nossas entranhas. Dores de perto. Tal qual a do laser que retificava a curvatura de minha córnea.
Analogamente à minha cirurgia para recuperar a visão de perto. Essa dor, esse cheiro de carne queimada, nos violenta - mesmo que saibamos que estamos tomando a decisão correta.
Para os que as fitam de fora parece coisa normal. Reações parecidas como a daquelas atendentes de Centro Cirúrgico Oftálmico.
Lembrei-me de uma mãe que internou seu filho, contra a vontade dele, numa clínica de dependência química. Ela precisava ver de perto. Domar a situação com vigor.
Cortar sua própria carne e fazer acontecer mudanças.
Ela sentiu o cheiro de carne afetiva queimada.
Não é fácil.

Mas, se assim não o fizermos, seremos dependentes para o resto de nossas vidas de nosso próprio destino.

Chega um momento que não dá mais pra adiar decisões.

Então, cerque-se de coragem e as enfrentem.

Abro o olho esquerdo agora.
Emocionado vejo a tela do micro, sem óculos.
Choro. Lubrifico os olhos com o mais precioso óleo da vida, as lágrimas.

Ainda há embaçamento, confusão, mas já consigo passar sem os óculos. Aceito-me embaçado, pois sei que só estou com 5 horas do corte, que ainda aprende.
A vista vai reacostumar a ver o perto, o não visto, embora tão perto.

Quanta coisa boa há perto de nós que não vemos mais?
Quanta coisa nos degrade a autoestima, nos faz infelizes, põe pra baixo e de tão perto de nós nos acostumamos, resignadamente, a viver com elas sem mudar.

Nem mudamos a situação; nem a nós mesmos diante de como nos deixamos abater e mobilizar-nos com a situação; ou mudamo-nos – a nós próprios, da situação vivida procurando outras possibilidades, noutras paragens.
Hoje operei os olhos - vista cansada. Preparo-me para ver o que esqueci, num canto qualquer de minha amiga alma - letras da vida, empoeiradas e turvas tal qual páginas de livros em caixas de depósito.
Ver o que de tão acostumado de não ver acabei achando que fora visto.
Ver meus amigos que não os via mais. Ver meus familiares. Ver a mim mesmo no espelho e recuperar a estima, a boa estima.
Levar-me para passear e ver beija-flores e girassóis, só pelo prazer de curtir e compartilhar meu ser... Cuidar de mim, deixar-me cuidar.

Esse é o primeiro texto que digito sem os óculos. A vista cansada para perto – para as coisas triviais e corriqueiras, começa a se despedir.
Hoje descobri que fiquei cego por muitos anos às coisas que realmente importam. Com 49 anos, endureci a visão criando cataratas na alma.
Hoje, faço um trabalho de tirar as remelas, os cerotones, de ver coisas que já tinha visto e que são belas, por simples e únicas que são.
Desaprendo velhas e nada significativas atitudes... já não tenho pressa de chegar em lugar algum! 
Ainda turva, cambaleante e medrosa a luz forma novos e velhos significantes na retina de minha alma. Coisas esquecidas e outras nem tanto agora fazem motivos.
Aqui e ali, uma imagem de esperança, de amor, de recomeço se forma.

Ah como são belos os olhos que enxergam as coisas que realmente importam, e que de tão perto, mergulhada que estão na escuridão de nosso ser, no pior de todos os breus chamado de indiferença, já não as víamos mais.

Agora vou pingar o colírio, ou o gardenal.

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