Sejamos apoio e abrigo ao outro

Chegando ao trabalho, procurei uma vaga para estacionar.
Entre tantas ocupadas, uma revelava-se vazia.
Estranhei. “Quando a oferta é grande”...
Era uma boa vaga. Sombreada.
Por que será que estava vazia?
Ao aprumar o carro nela, observei que a árvore que sombreava a vaga era segura por uma espécie de viga de madeira.
Ah! agora entendi o porquê da vaga vazia.
Era medo. E o medo imobiliza.
As pessoas têm medo de que a estaca venha a tombar e possa amassar o carro.
Não tenho mais medos pequenos.
Fitei aquela estaca e árvore por alguns minutos.
Orei com elas, e tudo que me evocaram naquela fria manhã.
Então, a partir daquele dia, sempre que adentrava o estacionamento ia procurá-la e fazê-la um pouco de companhia.
Aquela passara a ser a minha vaga predileta.
Tenho predileção pelos desprezados.
Fiquei imaginando a amorosidade do jardineiro, zelador, vigilante, funcionário, o que seja que construiu aquele suporte.
Deve ser uma pessoa linda. Uma luz na escuridão.
Ele, ou ela, percebeu que a arvorezinha precisava de ajuda.
Seu tronco não conseguia segurá-la sozinho.
Alguém que na apressada rotina de um Complexo de Tecnologia da Informação, o maior da América Latina, deteve-se para ajudar, ousou parar o ciclo acelerado do viver, e ao contemplá-la em suas necessidades, do limite fez poesia e aconteceu.
A árvore deve ter chorado de emoção. Não imaginava que alguém a veria e cuidaria dela.
Mais fácil seria podá-la, ou até mesmo cortá-la, numa sandice comum pelos nossos tempos. Até por não ser árvore nativa do Cerrado, um pouco mais “preservada” da ação humana.
Tento evocar a cena de seu cuidador indo numa marcenaria.
Ou aproveitando restos de madeira e numa oficina improvisada construindo seu suporte.
Quanta gentileza.
Você percebeu que ele construiu uma espécie de encaixe nas duas extremidades?
Por que será que fez nas duas?
Ele queria que a sua “deficiência” fosse delicadamente e harmoniosamente distribuída – em ambas extremidades, para não chamar a atenção de quem passava.
Percebem a estética do belo? Do bonito e da bondade?
Ao  fazer os dentes (encaixes), em ambas as partes, ele tirou a concentração do olhar naquilo que a limita.
Expandiu a percepção de nossos sentidos para o todo, para além do que diminui.
Da incapacidade fez-se a arte.
Sua amorosidade em ajudá-la foi tão grande que ele não a prendeu no suporte.
Percebem?
Ele fez o encaixe de tal forma que ela sobre ele apoie.
Tal qual um deitar no colo, solto para quem o procura e o acolhe.
Não há pregos, arames, cordas sufocando-a para que mantenham-se apoiada.
Ou limitando o crescer e autonomia de seu tronco, em vir a ser.
Um suporte que liberta. Que não causa dependência.
Que respeita e valoriza o crescer, tenro e dificultoso, da árvore debilitada.
Essa árvore é uma metáfora à amizade.
Foi isso que em prece ela me falou.
Quantos de nós precisa de uma pessoa amorosa dessas em suas vidas?
Ou, quantos de nós já fomos para o outro esse apoio?
Esse sustentáculo em momentos difíceis pelo que passaram.
Pessoas que nos apoiaram, às vezes com uma simples palavra, um gesto de gratidão, um reconhecimento desinteressado.
Algo que nos revelou que somos amados.
Pelas manhãs, sempre ao tomar o café para o trabalho, pergunto à Neta – jovem que trabalha em nosso lar e mora conosco, como foi sua noite de estudos na faculdade enfermagem que cursa.
Precisa ver o quanto ela sente-se importante e notada, em sua pequenez perante os olhos do mundo.
Aí ela deita a falar das aulas, das provas, e toda orgulhosa me diz que não ficou em nenhuma Dependência.
Pergunto o que é Dependência.
Ela me fala que é quando o aluno não consegue a média mínima para a aprovação e que terá que cursar a disciplina no próximo semestre.
Ah, digo eu, no meu tempo chamávamos de reprovação.
Dependência é mais chique, brinco eu.
Todos os dias ela aguarda minhas perguntas sobre seu curso.
Talvez aquelas perguntas sejam o que a faz esforçar-se para ter alguém com quem vibrar, celebrar, ou até dividir suas angústias como a quem tem em conseguir o FIES.
Corta a cena, eis que posto uma foto de uma radiola retrô que comprei.
Aliás, todas as radiolas são retrôs... rsrs
Uma pessoa amiga comenta que mandará uns discos pra mim, que foram de seus pais.
Emociono-me.
Outra, posta que se encontrará comigo na Diretoria de Tecnologia, para me presentear com  um disco de Maria Bethania de sua coleção.
Pergunto o porquê?
“Alegro-me em presentear amigos”. Simples assim.
Outra me diz que irá com uma amiga ver apartamentos nessa manhã. 
Abrirá mão dos sábados tão curtos para tantas pendências pessoais para ajudar uma amiga.
Pessoas do bem. Nem tudo está perdido na sociedade do preço.
Outra, ao término de um debate ácido no auditório, percebendo-me abatido, aproxima-se e ao me cumprimentar, abraça-me fortemente. Num abraço de irmãos de uma mesma tribo.
São pequenos gestos do tipo:  “Estacas que Suportam Árvores Frágeis”.
Não temos ideia da força que nossa genuína preocupação com o outro possa lhe causar.
Não temos ideia de quantos estão cansados, desesperançados e que uma simples palavra, bom dia, abraço, doação de afeto gratuito poderá ser a diferença naquele dia.
Poderá ser a alavanca para a superação que estava precisando.
Tomando o cafezinho nesse sábado, Neta solta uma sem eu perguntar:
“Seu Ricardo, passei em todas, estou de férias”.
Finjo um cisco nos olhos, engasgo, e venho digitar essa crônica noutra área.
Foi muita emoção ouvir isso dela sem que eu perguntasse.
Eu sou uma pequena estaquinha que está apoiando o crescer da Neta.
Não faço nada que me exija mais do que possa fazer.
Quantos de nós pode ser essa estaquinha para o outro!
E não precisa grandes recursos, dispêndio de tempo.
Mirem nessa estaca a foto. 
Rústica, de resto de madeira, mas que cumpre seu papel com maestria.
Precisa de muitos recursos não.
Para apoiar, para incentivar e estimular o outro a crescer, a desenvolver, a superar seus limites focando noutras áreas do ser, só precisa de nós mesmos – de nosso ser.
E em cada encontro podemos ser mais que uma soma zero, tornar o outro melhor ao passar em nossa vida. Ajudá-lo a expandir sua percepção de si mesmo, alavancando sua frágil auto estima.
É uma palavra, um telefonema, um olhar, um toque.
Algo que reconheça no outro sua presença em nosso viver.
Não há fórmulas para apoiar.
É um estado da arte.
Exige artesãos de pessoas.
E, cada um deles, no artesanato de seu viver, encontrará 
suas próprias maneiras de levantar os caídos, 
alimentar – com palavras de esperança, os cansados da saga e sina da vida e do viver.
E a arte é a feiticeira da vida.
Nos faz sobreviver.
Na individualidade,  dos tempos atuais ditos pós—modernos, a gratidão e generosidade perderam espaço para a indiferença e egoismo.
Cada um no seu feudo existencial, que por mais tecnologia de comunicação que acesse, mais involui em humanização e amorosidade para com os que lhes rodeiam.
Quanta gente do tipo árvore-de-tronco-caído precisando de suportes para sobreviver.
De apoio.
Gente que precisa de mim e  de você para que não desista de suas vidas.
De um mimo, de um eu te amo, de um:  que bom que você existe.
De um: “como foi sua aula ontem?”.
Gente precisando cruzar seu destino com jardineiros de amor,  que nelas enxegam para além do tronco defeituoso, enxergam potenciais que ainda poderão vir-a-ser.
Coisas que nem eles mais acreditam que são possíveis de virem a acontecer.

Mas esses apoios, ajudas fraternas, incentivos não poderão virar mordaças.
Cairíamos no erro oposto. O de negar ao outro sua própria saga. Super protegendo-o e o incapacitando, no mais cruel dos preconceitos, a por si próprio tentar.
Assim podemos ser suportes passageiros, que não aprisiona o outro em nossa fantasia de dmominação e controle.
Libertando-o quando tiver pronto, da ajuda e dependência agora fornecida, para que crescça pelos seus próprios caminhos, respeitando a autonomia e não gerando co-dependências de qualquer espécie.
Tal a estaca fará com a árvore, no dia em que não for mais necessária.
Não veja no outro o que ele não é.
Não procure as lantejoulas ou strass que caíram de sua veste existencial, nos embates que teve com na jornada do  viver. Procure os que restaram.
Procuremos rejuvenescer e fortalecer as pessoas.
Mas, como estamos distantes disso tudo.
Agora tudo é precificado. Tudo tem custo e até a ajuda é assim contabilizada.
Aguar o jardim do vizinho que saiu de férias, ou alimentar seus animais, pelo simples prazer de assim fazê-lo, sem cobrar nada em troca, passa a ser uma utopia de desapego e amor, cada vez mais distante no pós-moderno do consumo e mercantilização de todas as coisas, inclusive o afeto e atenção para com o outro.
O prazer de servir torna-se nos tempos atuais peso. Ou interesse.
Lembro de uma palestra da Helena Maria, da Nova Acropóle, na qual ela dizia que para ensinar às crianças o doar-se eles fazem uma técnica de servir um suco aos menores.
Os próprios menores vão servindo até que acaba o suco da jarra.
Propositadamente de quantidade inferior à quantidade de menores.
Aí eles refletem sobre acúmulo, partilha, generosidade.
Voltam seus sucos para a jarra, e o redistribuem pelos copos de modo  que para todos haja um pouco.
Belo e significativo. Educar para a cooperação, quanta utopia nos dias de acirradas competições em todos os aspectos da vida.
Eles aprendem o prazer de dividir, de se sentirem numa comunidade. De que não estão sós, e que o egoismo e individualismo pode ser superado pelo diálogo e doação gratuita.
Não há perdedores, nem vencedores no jogo do viver para a coletividade.
Ah!, como precisamos dessas estacas que nos suportam, apoiam , elevam, que massageiam nossa auto estima e quando todos dizem, e até nos mesmos, que não conseguiremos, que não podemos, que não nos levantaremos da queda, elas - pessoas estacas que são, nos dizem: 
" Calma, é só uma fase. Isso também passa. Em breve seu tronco vai estar mais fortalecido, e você conseguirá. É um luto que vive. Dói mesmo... Apoie-se em mim enquanto sofre."
O celular toca. É meu filho Rodrigo.
Pede um conselho.
Hoje é a festa de confraternização do escritório de advogacia no qual trabalha.
Eles se cotizaram, contrataram um churrasco que começara ao meio dia, na casa do seu chefe.
Pesaroso, me diz que ontem a filha do chefe sofreu um acidente e está na UTI.
Ele defende que não haja mais festa.
Eu digo, lógico!
Ele, constrangido pela natureza humana de seus colegas, diz que um grupo pensa diferente.
Alega o grupo que já pagaram os serviços e que trocando o lugar "acaba o problema".
SIC!  E a dor do colega com a filha doente?
E a solidariedade? E a empatia?
Ele me diz pesaroso, "que os tempos são outros", e que vai tentar argumentar com o grupo.
Diz-me que não irá. 
Digo-lhe que a própria consulta do tema, pelo grupo envolvido, é esdruxula.
E que sinto muito!
Percebem a Sociedade que estamos construindo, com algumas exceções aqui e acolá?
Entre ser estaca e apoio ao colega que sofre, e gozar a própria vida qual a escolha mais humana?
E se fosse conosco? Qual comportamento esperaríamos de nossos colegas? 
Precisamos juntas as vozes e pessoas de bem, em correntes virtuosas, para educar para um outro jeito de ser, um outro mundo possível. 

Voltando para minha estaca, o que essa pessoa está precisando nesse momento é de ajuda. É de compaixão. De um gesto altivo de renúncia ao material e de apoio ao emocional.
Que sociedade estamos criando?
Tudo vai revestindo de relação de utilidade, de usura.
Como essa manhã de sábado me falou!
Como essa viga de madeira e vaga de estacionamento me falou.
Lembro de tanta gente que foi suporte para meu viver.
Pessoas que sem elas a árvore de meu ser não teria crescido.
Teria ficado exposta às intempéries ou rastejando pelo viver.
Ou, mais cedo ou mais tarde, alguém a tiraria do estacionamento da vida por não ter serventia.
Como infelizmente às vezes fazemos com quem nos serve e ajuda, e depois os esquecemos num canto qualquer. Não voltando nem para um sútil obrigado.
Sejamos vigas de madeira, escora, suporte, gratidão, generosidade.
Não nos embruteçamos!
Pense bem em quem hoje precisa de um incentivo seu, uma palavra, um mimo.
Olha na tua estante o que sobra, o que não usa mais...
Quem sabe não seria hora de alegrar alguém com uma doação generosa.
Pare e também olhe na estante maior, a de seu coração, o que ali existe de bom e que pode ser compartilhado. 
Tem muita gente que precisa de você. Mesmo que nem elas, nem você, saibam o quanto.
Tire dessa estante interior a bondade, mansidão, justiça, carinho, atenção, respeito e esperança e a doe a todos que em ti procurarem morada, apoio, refrigério.
A vida agradecerá!



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