Pedacinho de Céu










Tudo começou quando recebi esse

 e-mail da Catarina, minha comadre
 que mora perto de casa:
"Venho dar uma dica de local agradável para bater papo, comer, beber e ouvir música: a "Feira do Produtor" toda quarta à noite. Experimentem o cuscuz com todo tipo de recheio por R$ 6,00.”
Eu já tinha visitado aquele local, porém meu olhar sobre a vida era diferente àquela época, nos idos de 2008.
Ontem, peguei o JG no colégio e saí com a firme intenção de me permitir reviver aquele lugar, com menos cataratas na alma.
Chegamos cedo, o local ainda abria, era perto das 19hrs.
O local visitado fica em Brasília, na Feira do Produtor do Jardim Botânico, ao lado da estrada que dá acesso à São Sebastião-DF e Unaí-MG.

Entramos desconfiados, eu mais ainda pois estava com uma muda de rosa vermelha, que acabara de comprar numa das lojas de plantas e flores do local. Deu vontade de presentear minha esposa com um mimo.

Com aquele vaso numa mão e o JG na outra, perguntei a uma senhora, com jeitão de proprietária de barraca de feira, onde era a barraca do tal cuscuz - tão referenciado pela amiga do e-mail.

A senhora apontou para a barraca da frente, contudo disse-me que eu poderia ficar sentado nas mesas da sua barraca, que o cuscuz viria até mim, sem problemas.
Ela chama-se Olga. Logo fizemos amizade. Olga também foi paciente do Hospital Sara e a identificação com seu drama ósseo foi imediata.
Meu filho, o João Gabriel (JG), também foi paciente do Sara, por longos dois anos.
Fui relaxando e papeando. Procurando saber da história daquelas três barracas, as únicas que abriam nas quartas à noite.
Olga falou-me que eles tinham prazer em abrirem suas barraquinhas também nas quartas, além dos finais de semana, para juntarem-se aos seus clientes e também divertirem-se no meio da semana.

Para eles aquele local era diversão e não trabalho. Eita!
Vendo a babação do JG, contemplando a churrasqueira de espetinhos de gato, ela logo preparou um espetinho pra ele.
Pronto, ganhou o menino.
Ela me disse que é de Paracatu-MG. Contei-lhe nossa recente visita à sua cidade, e do quanto gostamos, mais uma ponte de identificação.
Peço uma caipirinha. Ela me diz que quem faz é o Barbosa, da terceira barraca, a mais distante, aquela do cuscuz. Ela pede pra mim.

Logo ele chega trazendo-a, mais parecido com um personagem saído de algum filme Fellini.

Barbosa, por si só, é uma crônica. Recebe a cada um dos clientes com uma elegância de invejar ao mais fino dos lordes ingleses. Identifico-me com ele, somos ambos do nordeste.

Ele me conta que aquela feira de produtor acabou por se tornar um espaço de convivência de amigos, poetas, boêmios e amantes de todos os estilos e vocações.

E que foi a forma que ele encontrou para dá sentido à sua aposentadoria.

Eita! (2).

Eis que passa à minha frente, fumegando em direção a outra mesa, um acarajé imenso.

Aberto, com camarões saltitantes dançando sobre um prato.
Quando a senhora que o levou volta, peço-lhe um igual.
Ela se apresenta. Chama-se Odete e é a proprietária da barraca ao lado de Olga.
Agora conheci os três proprietários: Olga, Odete e Barbosa.
João Gabriel corre pelos cantos, comendo espeto de gato.
Um violeiro começa a tocar.
É noite cultural da Feira do Produtor e show será do Leyder & e Sua Viola.

Leyder é outro que saiu dos filmes do Fellini.
Misto de Zé Ramalho, Chitãozinho e Roberto Carlos, imagine!
Impagável.

Ele vem tocando e cantando, e vai parando em cada mesa. Um charme.
Olga pede a rosa que comprei e que tinha deixado em cima da mesa.
Ela quer contribuir para o gesto romântico e vai escondê-la, atrás de seu balcão.

Eita! (3)

Diz que vai escondê-la atrás do balcão, para melhorar a surpresa.

Perto das 20 hrs minha esposa chega.
Sei que ela gostou do lugar, de cara.
A conheço.
Faço um sinal para o violeiro, já combinado, e ele começa a cantar Chão de Giz.
Faço outro pra Olga e ela traz a rosa.
Pronto, a noite está garantida.
Cristina fica embevecida, e o violeiro ainda chega perto tocando.
Satisfação, teu segundo nome é carinho!
Ofereço a Canja de Galinha que Dona Olga tinha me dito que fizera.

Cristina prova e adora.

Eis que Dona Odete aproxima-se e me oferece um caldinho de feijão, diz que foi do acarajé e que não me cobrará nada.

Eita! (4)

Olho para aquela senhora e vejo um anjo.

Acho que bebi demais.

Não consigo tirar o rosto daquela senhora de bondade em pessoa.

Ela puxa uma cadeira e começa a conversar com Cristina.

De cara se identificam. Ambas são do Paraná: Cris de Londrina e Odete de Campo Mourão.

Ao lado, Olga brinca com o JG, tenta puxar conversa e tirá-lo do jogo do celular.

Missão quase impossível.

Mais à frente contemplo o “Le Barbosier”, o Barbosa, servindo com elegância seus clientes.

A cada caipirinha que ele me trazia, eu já começava a fotografá-lo de longe, tal a figura.

Dos três, a Olga era a mais séria.

Aí ela contou-me que desde pequena sofre com dores no quadril, e que faz acompanhamento permanente no Hospital Sara.

Que já toma um remédio bem forte pra dores.

Que a dor virou companheira, sempre presente com seu aguilhão que lhe queimava na região em que o fêmur encontra-se com a bacia.

Agora entendi melhor o quanto ela era especial.

Não, ela não era a dona de barraquinha mais séria. Apenas a que mais sofria.

Quem, com fortes dores ósseas, pede para guardar uma rosa de seu cliente, tendo que deslocar-se, sair de traz do balcão, ir numa mesa, e dali voltar, com dificuldade de locomoção e sofrer?

Quem, com uma dor óssea lancinante, caminhará até uma mesa, pegará uma rosa, e voltará com ela para escondê-la, só para aumentar a intenção do gesto do seu cliente?
Quem?

Belisco-me para ver se aquele lugar existe mesmo, ou se não estava sonhando.
O violeiro toca. E a sua música eleva e aplaina corações.
“Ando devagar por que já tive pressa. E levo esse sorriso por que já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe.”

A canção de minha vida.

Um acarajé aqui, um caldo acolá e a vida vai ficando boa novamente.

Odete oferece à minha esposa limões que ela trouxe do pomar de sua casa.

Conta-lhe sua história.

Filha de pais muito pobres, começou a trabalhar em “casa de família” aos oito anos, para cuidar de um bebê.

Foi trabalhar em Campo Mourão na casa do Gerente do BB, em 1968. Dois anos depois ele veio para o DF e ela veio junto.

Sua família não queria, achava que ela era muito nova.

Mas, com 10 anos ela já cuidava do bebê do casal.

Naquela época, o trabalho infantil era comum.

Muitas crianças carentes cresciam trabalhando em casas mais abastadas. Eram as Senzalas da pós-modernidade.

Odete chegou em Brasília em 1970. Tudo era diferente.

Trabalhou até os 18 anos na casa da dona patroa.

Depois, como queria estudar e a patroa não permitia. Saiu de lá. Conto-nos que sofreu muito. Mas, que ou sairia ou nunca seria alguém na vida.

Eita (5)

Achou emprego na casa de uma outra senhora, que entendeu que ela não era uma “escrava” e deu-lhe condições de estudar e se formar em pedagogia.

Sua patroa a incentivou de todas as formas. Terminando o curso foi trabalhar num colégio de Brasília, o La Salle, e ali se aposentou.

Com o dinheiro que juntou a vida toda comprou um lote, construiu sua casa e hoje vive de economias e aposentadoria.

Contou-nos que o barzinho de feira não lhe dá dinheiro. Que é a sua ocupação, sua terapia.

Eita (6)

Nessa parte da noite, quem se emocionou fui eu, que estudo o sentido do trabalho.

Parou um pouco de conversar, foi atender a uns clientes, e, na volta trouxe um bolinho de acarajé.

“Não precisa pagar, é oferta”, disse-me com olhos de lua cheia.

Aquele olhar de quem acolhe e encanta o outro. Olhar de doçura e mel.

Na saída, chamou-nos e nos deu uns sabões em barra que ela mesma fabrica.

Existe lugares com Barbosas, Olgas e Odetes.

Pessoas que fazem únicas suas existências.

Que transcendem suas experiências de vida e acolhem o outro como quem acolhe a um amigo.

Pessoas que lutaram muito e que aprenderam com a canção que:

“Todo mundo ama, um dia todo mundo chora,
Um dia a gente chega, no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz. E ser feliz”

Pequenas identificações e um mundo se descortina.

De fato, em 2008 eu não estaria preparado para ver aqueles anjos: Barbosa, Olga, Odete e Leyder.
Tenho certeza que muitos que ali se sentam não os veem.
Voltarei para aprender mais com eles sobre a arte de bem viver.
Quanto ao cuscuz, perdeu a importância. Quem sabe noutro dia.

Um comentário:

  1. Legal !!!!! Imaginávamos que você iria se identificar com o ambiente. Vamos marcar um dia...

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