Tempo de Recomeçar


Atravessando a rua, em direção ao almoço de hoje, vi-te caída no chão.
Coração ficou apertado.
Ninguém por ti parava, para uma prece qualquer.
Apressados desavisados passavam por mim como quem a forçar-me sair da frente de suas vidas corridas.
Mal paravam para te ver.
Tu interrompias parte da passagem, deitada na faixa de pedestres.
Mas, eu a vi e parei.
Jazias tu ao lado de um buquê de flores, que outrora te servia de alimento.
Tu eras um enorme “ninho” de abelhas, que despencara de seu galho-alicerce: talvez pela força dos ventos; talvez pela “prudência” dos Homens.
Aproximei-te de ti, incrédulo com a luta pela sobrevivência que testemunhava.
Restos de favos, mel escorrendo, células hexagonais - protetoras de novas crias, expostas.
Pânico e desolação em toda parte.
Podia escutar o choro das crias, nos berço-favos ainda em ser.
Onde estaria a abelha-rainha? Teria se salvado?
Quem cuidaria dos filhotes, agora expostos ao relento e sol inclemente?
Zangões e operárias voavam sem rumo.
Umas chegando com pólen, sem ter onde colocá-lo.
Outros, tentando defender o indefensável.
Eram abelhas sem ferrão, do tipo arapuá. Daquelas que gostam de frutas.
Ajoelhei-me perto delas, não tive medo.
Ali, conectei-me ao momento por alguns minutos.
Solidarizei-me com sua tragédia.
Olhei para elas e contei uma história para acalmá-las.
“Era uma vez uma grande colmeia de abelhas que fora expulsa de sua terra natal.
A árvore na qual tinham feito o seu ninho fora tragada pelas correntes de um trator-gafanhoto.
A mamãe delas era uma Rainha muito forte.
E, esforçou-se muito para tirar a terra que caíra por cima dela.
Ao conseguir, clamou aos quatro ventos por piedade para sua família. O vento Aracati disse-lhe, suba em minhas asas.
Recolha suas filhas, operárias e zangões, venha comigo.
E a elas voaram, voaram, até um pé de manga do quintal de um velhinho solitário.
Todos os dias o velhinho sentava debaixo de sua sombra e ficava conversando sozinho. Naquele dia algo aconteceu.
Um vento estranho trouxe-lhe companhia, às centenas.
A abelha-rainha logo procurou galho seguro, e ali começou novamente sua jornada. Todos os dias o bom velhinho acompanhava a construção.
Cera a cera, favo a favo, nascia uma nova história.
A dele também. Já era hora de sair de casa novamente e atrever-se a viver. Ele tinha parado tudo, desde que sua esposa falecera. Elas inspiraram-nos ao recomeçar.
Elas não tinham vindo naquele vento e àquele pomar à tôa.
O bom velhinho colocou uma placa no pé de manga com a inscrição:
Bem-aventuradas abelhas da esperança, sábias na arte de recomeçar.”
Terminei a estória e todas estavam marejadas.
Fiquei pensando, enquanto as vi pousando uma a uma que ambos voaram para novos lugares: o bom velhinho e as avelhas. Elas para um outro pomar. Ele, ele para uma outra possibilidade de si mesmo.
Ambos reconstruíram suas vidas – e ao mesmo tempo. Um contando para o outro as aventuras e desafios que iam superando.
Coisas simples, como voltar a fazer a barba.
Ou, explorar novos quintais em busca de saborosas fragrâncias em frascos de polens.
Ou, de como é boa sensação de andar sozinho novamente, de reaprender a cuidar de si e da casa. De fazer compras, e até encontrar prazeres esquecidos.
Nos finais de tarde, o velhinho levava um pouco de flores e deixava na porta do ninho.
Então, sentava-se e esperava que suas amigas aproveitassem o pólen por ele trazido.
Aos poucos, foram renascendo: abelhas e homem.
Ambos, com a coragem de sobreviventes.
Não, não era hora de entregarem-se à tristeza e desânimo de lutos amargos.
Terminei de matutar e fazia silêncio.
Lentamente, o movimento ao redor do ninho foi cessando. Nada de revoadas, de vôos desesperados. Nada de procuras por um lugar no galho que não mais existia.
Fiquei aflito, o que disse demais?
As operárias e zangões andavam por cima elas crias.
Como quem a se despedirem.
Uma abelha mais graúda saiu de dentro de um favo.
Por onde passava, todas abriam-lhe passagem.
Eu podia sentir sua dor.
Ela começou a sobrevoar o ninho.
Não sem antes mergulhar por algumas vezes e tocar nas crias.
Parou à minha frente, fez um gesto de agradecimento pelo, e mergulhou numa flor rósea.
Minutos depois, voltou até mim e depositou o pólen em minha mão.
Chorei emocionado. O guardei na minha carteira. Ali há vida.
Depois, ela deu sete voltas ao redor de seu ninho e partiu.
Operárias e zangões, vendo a cena, seguiram atrás, numa grande revoada.
Partiram sem olhar pra trás, em busca de novo quintais e de um corações de homens que precisem de motivos para amar e recomeçarem suas vidas - nem que seja o de observar uma família de abelhas começando tudo outra vez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores