Brisa Aracati (Autor Ricardo de Faria Barros, Ricardim)


Olhei as montanhas e sorri. 
Delas, vinha uma aragem cheirosa, a manhã descortinava-se em mil tons, e numa luz impressionante.
Durante a madrugada chovera torrencialmente, com direito a muitos trovões, raios e ventanias.
Não esperava que quando abrisse as janelas aquele Aracati brindasse meu dia.
Então sorri, deixando aquela brisa suave invadir minha alma, renovar meu ser e encantar meu dia.
Aracati é uma palavra em tupi, originada da aglutinação de três partículas: ara (tempo); catu (bom) e ty (água, rio). Este tipo de vento que corre sobre as águas, trazendo delas a umidade, é mais comum no litoral. Por características geográficas, no litoral Sul do Ceará, tem-se sua maior predominância, na região da cidade de Aracati, ao lado da paradisíaca Canoa Quebrada.
Quando ele chega na areia da praia, ainda passa por cima de um enorme curso de rio, o Rio Jaguaribe, pegando mais uma carga de umidade, até chegar em Aracati, potencializando efeito desse vento que vem do mar, todo final de tarde. 

O Aracati não é um vento forte, daqueles que incomodam banhistas. Como o Vento Nordestão no Sul, ou daqueles que precisamos nos agasalhar, como o Minuano.
O Aracati é uma brisa suave, meiga, doce, uma brisa amiga, quase um abraço que a natureza dá na noite que se aproxima, diminuindo a tórrida e claustrofóbica sensação de se estar numa bolha de calor. Em Aracati é comum as pessoas colocarem as cadeiras nas calçadas e aproveitarem a fresca do Aracati entrando, trazendo a umidade do mar. 

Assim, senti o Aracati nessa manhã. O vento vinha das montanhas, e trazia consigo orvalhos serelepes que celebravam o raiar do sol, numa manhã linda, após as chuvas da noite. O cheiro era de terra molhada, daqueles que ficamos inebriados ao sorvê-lo.
Entrei no banheiro sorrindo, minha esposa olhou-me e perguntou-me o motivo.
Falei que fora brindado com a brisa Aracati e que me sentia renovado, com a autoestima bacana e alegre por mais um dia de vida.
Existem almas Aracati em nosso viver. Pessoas que quando cruzam suas existências conosco, sopram sobre nós uma brisa suave, que nos reanima. Uma brisa perfumada e restauradora.
Aí, botamos as cadeiras de nosso viver, ao lado dessas pessoas, e nos deixamos envolver por aquela presença amorosa, que nos faz tão bem.

Não falo de sexualidade. Falo de amorosidade. Tenho vistos e sentidos muito Aracatis em meu viver. Outro dia, quando almoçava, vi numa mesa ao lado uma vovozinha dando comida para sua neta, colher a colher, na boca.
Aquilo entrou em meu peito como o Aracati. Senti-me melhor, em paz, ao ver aquela cena de cuidado.
Ontem, chegando para dar aula, dou um abraço na Natália, supervisora de multimeios do Ibmec, e ela me diz: Que bom que o Feliz voltou para mais uma disciplina. É amigos, ela me chama de Feliz. Essa saudação da Natália é meu Aracati, antes de começar as aulas. Eu posso estar preocupado, ansioso, chateado com algo, ou até simplesmente cansado, mas quando a Natália me ver e diz: “boa noite Feliz”, eu abro um sorrisão e esqueço tudo.
Aracatis nos fazem bem. Nos tornam melhores, maiores e até nos sentimos mais jovens, fortes, potentes, encarando a vida com um novo olhar.

Na natureza humana um dos maiores Aracatis é a ternura. A ternura que pode se expressar pelo cuidado, pelo reconhecimento que recebemos por algo, por se sentir para alguém especial, ou pertencendo a vida da pessoa, ao ser depositário de suas mais profundas revelações.
Sempre que escrevo e público minhas crônicas recebo Aracatis de meus amados leitores. Outro dia, uma pessoa recebeu um de meus livros de presente. Ela achou meu e-mail na orelha do livro e disse-me que eu passara a ser sua companhia, durante o trajeto no metrô, e que aquilo estava fazendo bem a ela, num momento de vida difícil que estava passando.
Pronto, nem precisa dizer que passei o dia rindo à tôa. Lembram daquela música de Maria Bethânia que começa assim: “De repente fico rindo a tôa sem saber porquê...”
Agora vocês sabem, foi o Aracati da ternura que brindou o poeta, e lhe fez sorrir no outro dia. A ternura de coração agradecido e feliz, por algo de bom que ele viveu.
Dirijo-me ao trabalho, no caminho vejo uma mãe levando seu filhote para tomar sol, coisa um tanto rara nesses dias de muita chuva em Brasília. Uma cena Aracati.
Antes de entrar na labuta, paro padaria e fico bem alegre ao ver que a Juliana retornou da licença maternidade, nos abraçamos Aracati. Ele diz que estava com saudades, e eu dela. Pergunto por sua filhota, prometo-lhe pacotes de fraldas, e ficamos uns minutos – aracatiando-nos, um ao outro.
Passo pela sala da diretoria e o Itaborahy me presenteia com uma colônia de Kefir. 

Segundo a tradição, essa milenar cepa de coalhada/iorgute, só pode ser doada. O Kefir é bom para tudo, e noto que ele ficou emocionado com a doação e eu idem. Farei coalhadas de kefir, nos meus dias de pós-carreira. Aquele gesto, mais que um Kefir, continha nele a brisa Aracati.
Chegou no setor e um grande amigo procura-me para desabafas sobre algo que lhe ocorreu. Sentir-se digno de receber confidências de um amigo, é saber que ele em mim confia, dessa relação sopra Aracatis. A ternura de confiar em alguém, a ternura de acolher o outro, parando tudo para deixa-lo se fazer morada em teu coração. Isso também é Aracati.

Que vento bom e com vida é tu Aracati. Como podemos ser para o outro. Como podemos agradecer quando percebemos em nossa vida que pessoas gostam de nós, cuidam de nós, torcem por nós e até nos dizem coisas para nosso engrandecimento, verdadeiros corretivos na alma, que só quem tem a alma soprante, “aracatimente” falando, o faz.

Nessa sociedade com relações tão monetarizadas, ou erotizadas, faz-se urgente que mais e mais sopre em nossos corações a brisa Aracati. Aquela que vem de uma amizade, ou compaixão, comprometida, sincera, desnuda e verdadeira, sem segundas intenções.
Sopra Aracati, vem anunciar a bondade, a vida e a renovação de nossas forças!
Nunca mais olhe para quem expressa ternura, cuidado e amorosidade para você, da mesma forma. Nunca, ele está soprando o Aracati em sua alma sequiosa.
Revele nos teus olhos a presença do outro, aquele que é um Aracati em teu viver. Deixe que a brisa dele invada teu ser. Sinta sua ternura, cuidado, atenção e admiração para contigo. Sinta os gestos de generosidade dele, tornando teu viver melhor e mais fácil. Sinta a amorosidade dessa pessoa, talvez em gestos de lavar tuas camisas, preparar tua ceia, ou apenas, esperá-lo com uma xícara de café. 
Cuidado com os olhos opacos da indiferença, que cegam a visão do Aracati. Para sentir o Aracati tem que se prestar atenção ao belo, bom e virtuoso. Abrir bem os olhos e a alma. Ele, o Aracati, anda passando despercebido na vida de muitos, que andam correndo ansiosos e preocupados por aí. Estes não mais valorizam, agradecem ou acolhem os gestos de amorosidade, ternura, cuidado e atenção que recebem. Fruto da rotina de um piloto automático em que se tornou seu viver, anestesiado de brisas Aracatis.
Tanto as que sobre eles sopram, como as que dele poderão sair, caso preste mais atenção ás necessidades dos que lhes rodeiam.
Sejamos Aracatis, e reconheçamos Aracatis, dando graças a eles, sempre que em nos soprar trazendo uma aragem cheirosa e revitalizadora de sentidos.

Vejam que belo registro do Aracati, no Diário do Nordeste, de 18/02/2012:
" Antes do sol se por, e mesmo depois dele, um grande sopro que vem do mar corta o Ceará ao meio, levanta poeira, vestido de moça, roda cata­vento, espalha o cabelo da mulher sentada na calçada, despede do calor com sua brisa marítima fresca no sertão. É o "vento Aracati", que todos os dias percorre mais de 300 quilômetros. Canalizado pelo Rio Jaguaribe, o vento compõe real e imaginário dos sertanejos, desde bem antes de ser retratado no romance Iracema, de José de Alencar, e de ser objeto de estudos científicos na Universidade Estadual do Ceará.
Patrimônio imaterial do Estado, o vento virou versos de José de Alencar, em Iracema: "O doce Aracati chega do mar, e derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão. A planta respira; um doce arrepio eriça a verde camada da floresta". "

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores