Cartas ao JG - Paredes Encantadas (Autor Ricardo de Faria Barros, pai do João Gabriel, de 7 anos)

Sabe filho, hoje pela manhã quase não trocamos palavras, no trajeto ao trabalho/escola.
Eu dirigia pensativo aqui em Brasília-DF.
Chateado com a operadora de telefone residencial que há 4 dias nos deixa sem serviços.
Você, matava o tempo jogando no meu celular.
Esse pensar negativo que me absorvia apertou o "Play" da tecla Aborrecimento.
E fiquei com ela ligada, tirando toda a graça do início da manhã.
Em meio a pensamentos encaracolados e sem cor, percebo algo voando sobre o teto de um carro, que seguia à minha frente no lado direito.
Estávamos passando perto do Iate, na Av. das Nações.
Aprumo a visão, incrédulo.
Olho atentamente para aquilo, e pisco os olhos.
O que será que está voando sobre o teto de um carro vermelho, que segue à minha frente, na faixa da direita?
Algo semelhante a um pássaro, vermelho e azul.
Mas, não poderia ser um pássaro, estava muito perto do teto e rápido, uns 60km.
Seria um novo tipo de Drone?
Seria uma pipa, amarrada de dentro do carro?
Acelero o carro para emparelhar, e meu coração fica em estado de graça, vejo que é uma Arara.
Um belo exemplar, com asas que de uma ponta a outra deveria ter uns 80cm. Ela voa bem rente ao teto, acompanhando aquele carro.
Cheguei a pensar que o seu treinador estivesse dentro dele, se é que existe treinador de Araras.
Mas, quando saí da Avenida, pegando o acesso pela UNB, percebo que ela agora acompanha meu carro. No lado esquerdo.
No banco de trás você jogava com meu celular. Eu de tão abismado, de tão estupefato com a beleza da cena, travei de emoção e não consegui alertá-lo para vê-la também.
Desculpe.
A cena era idílica. Lembrava aqueles desenhos animados. Ou filmes de ficção, no qual os bichos interagem com humanos.
A Sra. Arara batia asas vigorosas, a pouco metros de meu lado. Linda, linda, linda. Mais à frente, eu dobrei à direita e ela seguiu caminho.
Cheguei ao trabalho em êxtase. Minha face estava radiante.
Paulinha, nossa telefonista, soltou um: “O que você tem, está estranhamente feliz?”
Disse-lhe que vim para o trabalho com uma Arara.
Aí ela perguntou-me da internet lá de casa.
Então, dei-me conta que houvera esquecido completamente do aborrecimento que logo cedo acompanhara meu dia.
A Arara curou-me de todo pessimismo, decepção e angústia com atendimentos frustrantes que vinha recebendo, ao longo da semana.
Ela tirou o “play” do modo Aborrecimento.
E renovou minhas esperanças.
Pensei na importância das pequenas alegrias que vamos tendo ao longo do dia, para nos dar forças na caminhada.
Mal soletrava esses pensares, no meu pensamento, e a Paulinha vem me mostrar o vídeo de seu apartamento, finalmente decorado.
Ela levou meses brigando com a construtora, que entregou seu Ap. cheio de defeitos.
Agora ela está radiante. Monstra-me o vídeo que fez, cômodo á cômodo, e sua alegria me enebria.
Após meses de chateação com a construtora, daquelas que temos quando percebemos que a cerâmica está soltando, de tão mal colocada que foi, ela finalmente pode lavar, encerar e decorar seu ninho.
Ela me mostra cada cantinho, com um olhar faiscante.
Quando o vídeo chega na sala, ela dá um pause e me mostra a parede que decorou. Ela me disse que não tinha dinheiro para papel parede, para estampas bonitas.
Então, recortou borboletas que achou num site, as fixou com durex, e fez daquela parede um quadro de Matisse.
Aquela parede virou uma parede encantada, quase um altar.
Sensacional! Paulinha encontrou seu jeito de cultivar pequenas alegrias. Ela me disse que quando chega em casa, e olha para seu cafofo arrumado, ela esquece de tudo: do atraso do ônibus, do salário pouco, do cansativo dia, e senta-se no sofá contemplando a revoada de borboletas.
Sabe filho, precisamos dessas pequenas alegrias. Mas, para vê-las precisamos nos desconectar, de pensamentos negativos, ou até de tecnologias, como seu celular durante o voo da Arara.
Um pensamento negativo só deixa de funcionar no modo Play ativado quando nos permitimos a um outro, de sinal diferente.
Assim será com muitas coisas em teu viver. Quando não tiver dinheiro para algo, faça como a Paulinha, corte as borboletas de papel, cole-as com durex, e curta sua parede possível. Entende filho meu?
Deixe a mística e mágica de uma Arara alada encantar teus dias.
Veja que belo aquela mãe, ao atravessar o filho para a escola, proteger com suas mãos o ouvido dele, da ventania que nos cercava.
Você viu?
Veja que belo aquela vovó dando o almoço para sua neta.
Você viu?
Lembra de sua alegria, domingo passado, quando chegávamos na igreja e ao estacionar apareceu um Pikachu, no jogo Pokémon.
Você ficou radiante, excitado para capturá-lo. E depois, após a missão cumprida, seu coração exultava de felicidade, quase parando o tempo.
Você até esqueceu que estava chateado por não ter conseguido acessar a rede, durante o domingo, com seus vídeos intermináveis de youtubers de jogos.
Precisamos dessas vadias alegrias, dessas brevidades de luz, para amortecer as pancadas do dia a dia direcionando nosso olhar para o lado bom da vida.
Sei que a rede continuará desconectada, mas outras emoções passam também a habitar teu coração, quando se deixa por elas também guiar.
Emoções positivas precisam de cuidado e zelo no seu cultivo. Aprenda a cultivá-las. Na maior parte das vezes elas estão ali, pertinho, disponíveis ao toque de seu olhar. É só prestar atenção e acolher o bom, o belo e o virtuoso.
A vida pede momentos de paz, de contemplação, de reabastecimento de valores e propósitos. A vida pede poesia, mesmo que na dureza do asfalto.
Pede amorosidade, em nalvas eternidades, de gente que te quer bem e cuida de ti.
Tire o play do modo Aborrecer. Com essa tecla apertada, nada verás de bom acontecendo em ti mesmo, no outro ou na realidade.
No modo Aborrecer, até as manhãs mais radiantes se tornam cinzentas e perigosas. Roubando-lhe vida, motivação e entusiasmo. Na agenda de teu coração, deixe páginas em branco para preenche-las com borboletas, araras, pikachus e, nunca esqueça, com a fé.
Aquela que nos dá a alegria duradoura, não importando as circunstâncias.
Aquela Arara que acompanhou nosso carro, por uns 200 metros, e nos deu ânimo de viver, nos acompanha dia a dia, está sempre conosco, e se chama Espírito Santo.
Ele é nossa chama de viver e o Guardião de nossa esperança

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