Eu vi a Pietà (Autor Ricardo de Faria Barros, Ricardim)


Você já viu a Pietà, aquela escultura de Michelangelo?
Ou o encontro do Rio São Francisco com o mar?
Ou o orgulho de uma mãe, ao deixar a maternidade com seu filho?
Já testemunhou em sua vida a satisfação de receber o primeiro salário, aquele que mais parece um tesouro, fruto de seu trabalho que é?
Você já viu o júbilo de um estudante ao concluir sua primeira graduação?
Já viu a esperança de mãos em prece, diante do insondável de uma doença impactante?
Você já tocou o amor, num abraço de eternidades, daquele nos quais o tempo se contorce para não perder nem uma cena, de afetos enamorados?
Você já viu a felicidade de quem caminha por roçados, em tenras mudas de feijão e milho, e ao longe contempla a babuja em forma de doce relva, que saciará animais fomentos?
Você já se sentiu acolhido pelo místico cheiro de altar, reinante na cozinha de seus pais, ou avós?

Todas essas cenas habitam um mundo mágico, místico, misterioso. O mundo dos carinhos d´alma. Quando estas cenas acontecem, e mais uma infinidade desse naipe, um rasgo de luz desce da eternidade e, qual um flash, ilumina instantes mágicos. Galvanizando-os em nossas mentes e corações.
E, desses instantes em instantes, a vida vai acontecendo e desabrochando, em mil tons de significados.
Dirigindo para São Sebastião-DF, com uma lista de afazeres sabadinos à tocar, de longe vislumbro uma cena, que cegou os olhos meus de tanta belezura.

Sr. Valdecir, do alto de seus 75 anos, está pintando sua casa de amarelo.
Numa corrente virtuosa, temos nos cotizado para prover pequenas reformas em seu barraco.
Já colocamos revestimos e forramos o banheiro, pintamos o interior da casinha e, mais recentemente, afixamos uma faixa de cerâmica no exterior, de um metro, para proteger a parede das chuvas e umidade.
Ficou faltando pintar o muro da casa. Na última semana, pedi que ele orçasse o valor da pintura externa. Ele me disse que com duas latas o serviço estaria feito. Providenciei as latas de tinta, e guardei uma quantia para custear a mão de obra.
Mal não foi minha surpresa, o Sr. Valdecir de próprio punho tocou o serviço.
Então ao vê-lo pintando a casinha, parei o carro e disse-lhe:
- Oxente não contratou o Sr. Damião.
Sr. Damião foi quem pintou o interior do barraco, a um custo de R$ 100,00 dia.
E Sr. Valdecir me responde:
- Não quis lhe dar mais gastança, decidi eu mesmo pintar minha casinha.
Uaauuu!!! Quanta dignidade e altivez nesse gesto dele. Ele podia ter contratado Sr. Damião, afinal o serviço era custeado por terceiros. Mas, ele quis aliviar o peso.

Ele quis tomar parte naquilo, emprestando com a dignidade de seu gesto, e as força de seu suor, um rasgo de luz no infinito. Antes de ligar o carro, e partir, ele veio até mim e me disse: “Veja como está ficando bonita minha casa...”

De seu ser resplandecia uma luz, inenarrável. Contemplei aquele rosto cheio de rugas, de tanta peleja pela vida, e pedi para fazermos um self.

Chego em casa radiante, com gosto de luz no coração. E aí percebo uma cena de indefinível beleza.
Meus três filhos, noras e genro, assumiram a produção da Ceia de Natal, de um Natal antecipado, privilegiando nesse encontro a estada de meus pais na cidade, e a deles, já que 2/4 de meus filhos passará o Natal no Nordeste.

A cozinha estava um frisson. Eles botaram logo para correr a mim mesmo, e a papai. Segundo eles, nós bagunçamos tudo, e não temos lá muita higiene gastronômica.
Intriga da oposição. rsrs
Então, ficamos ao longe, contemplando a cena. Era um tal de picar maça, uvas-passa e desfiar frango que mas parecia coisa de cozinha internacional.
Rodrigo e Andreza assumiram a farofa e o frango desfiado. Tiago e Carol, o bacalhau. Priscila e Hugo, a salada e o Chester.
Como numa orquestra, tudo era sincronizado e harmonizado. Fechei os olhos e escutei com o coração a preciosidade da cena de filhos cozinharem para seus pais, tios, avós e amigos.
Tinha horas em que o stress aumentava, daquelas que eles não podiam parar nem para fazer fotos, tal a adrenalina no preparo dos pratos e o tempo que escorria pelas conchas.
Outro rasgo de luz desceu da eternidade para habitar aquele instante mágico, místico e mobilizador de boas emoções.

À noite, mesas postas, bem caprichadas pela decoradora-mor, a Cristina – minha esposa. Tudo estava pronto, perto das 21h30min todos os convidados já tinham chegado.
E a noite estava tão bela como uma canção de amor, de amor daqueles correspondido.
Pontualmente as 22hrs, fez-se um silêncio no recinto. A mesa da janta seria posta. Uma a um os chefs foram trazendo seus pratos. Mais parecendo uma procissão, de tanta reverência e sacralidade que emprestaram ao momento.
Todos comeram e elogiaram os pratos. Os filhos e “agregados”, enfim relaxaram. Deu certo.
A alegria deles era contagiante. Principalmente quando percebiam as pessoas repetindo os pratos.
Depois de saciados, passamos a contar nossas histórias, de vidas editadas, das partes boas que vamos guardando para abrir suas narrativas, em momentos como esse, como quem abre boas comportas emocionais.
E assim, de pequenos momentos mágicos, muitas das vezes não mais percebidos – pelo cansaço e aflição de corações galopantes, compomos nosso raiar de um outro dia possível.
Mais orante, terno, amoroso e tolerante.
Sábado eu vi a Pietà, em cada uma das cenas que acima descrevi. Pietà que para ser vista tem que se desnudar da arrogância, dos olhos opacos da indiferença e de toda espécie de orgulho e egoísmo.
Tem que ser vista com pelo olhar de uma criança, de uma criança que nasceu num estábulo, para nos ensinar que somos predestinados ao amor. É só ficar atento.
Um amor que ventila nosso ser, que areja nossos dias, que independente do que façamos, ele está acontecendo agora, nesse exato momento em que me lê.
Sempre com infinitas possibilidades, em mil variações, duração e intensidade, tal como as que produz qual a Brisa Aracati quando adentra por 300 KM, pelo Sertão do Ceará, trazendo consigo a umidade do Rio Jaguaribe e do Mar.
Renovando a esperança e vontade de viver por onde passa.
Bora lá, prestemos mais atenção, vejamos a Pietá!

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