No Rancho Fundo da Odésia (Autor Ricardo de Faria Barros)


Acordamos com o firme propósito de ir conhecer um encontro de rios.
Coisa que, convenhamos, nem sempre está ali pertinho, há poucos quilômetros para ser ver.
Trata-se do encontro do Rio São Miguel com o Tocantinzinho, ambos se abraçam na Divisa dos Municípios de Colinas do Sul-GO com São Jorge-GO.
Então, botei meu melhor traje de desbravador e fiz do meu carro um valente 4 x 4, daqueles Off-Road, e seguimos pela íngreme trilha de uns 10 km, descendo e subindo morros de ângulos radicais.
A trilha era de barro e bem estreita, em alguns lugares eu sentia que o carro encolhia, pra caber entre as barreiras.
Não havia habitação por perto, nem sinal de humanos.
Aqui e acolá, uma plaquinha indicava que precisávamos seguir em frente.
E tome primeira e segunda marchas, e um avanço decidido, metro a metro, e sem hesitação.
JG divertia-se, bancando o navegador olhando bem a frente, para enxergar qualquer traço de poeira, que poderia indicar um carro vindo em direção contrária, o que só aumentava a emoção.
Em alguns lugares quisemos parar para contemplar as montanhas e desfiladeiros, em vistas de estonteantes belezas, mas a prudência recomendou seguirmos.
Ah! Essa tal de prudência!
Ao descer uma pirambeira e dobrar a esquerda achamos um vale encantado. Nele, uma casinha, árvores frondosas e o simpático Joaquim nos recebendo.
Estávamos chegando no final da estrada, dali em diante só a pé, por mais dois quilômetros.
Joaquim fez as cerimônias e nos ensinou tudo. Como chegar, as melhores vistas e acessos.
Um gentleman.
A única casinha que emoldura o vale encantado é de sua irmã, a Odésia, e nela funciona o restaurante dela.
Ele nos disse para encomendar o rango antes de seguirmos pra trilha, “pois a comida só é servida pra quem falou que queria, com duas horas de antecedência.
Era próximo das 10hrs e ficamos de voltar às 13hrs para rangar. Encomendamos peixe com carne. Poderia ter sido galinha com peixe.
Mas, JG ainda não come as penosas, que pena!
O final da trilha revelou-se como um bom conto de Drumond, uma narração de Monteiro Lobato, ou a poesia de Jessier Quirino.
Era boniteza demais. Pegamos o acesso mais difícil, afinal para quem fez a trilha do dia anterior de grande dificuldade (Cachoeira do Segredo) e conseguiu, aquela era fichinha.
Do mirante, há uns 300 metros de altura, vimos os rios trocarem um beijo, entre si. Eles vem margeados por paredões de pedras. Cada um correndo por um lado, de longe eles nem se percebem.
De repente, quando dobram uma esquina de pedra, uauuu!!!
Se abraçam, se beijam, se misturam formando agora um leito caudaloso, de uma expressividade impressionante.
O som da felicidade do encontro deles é ouvido do mirante, como se fora crianças que se encontram num parquinho de diversão, para juntas brincarem de viver.
Tentei decifrar, após o enlace, qual dos dois era um. Impossível. Não há diferenciação, como a do Rio Negro com o Solimões.
Esse encontro foi muito intenso, pois misturaram-se a ponto de não saberem mais onde começa e onde termina o outro.
Oh São Miguel, quais de tuas águas agora são Tocantinzadas?
Oh Tocantinzinho, quais de tuas águas agora são Miguelzadas?
Descendo para tocar naquelas águas, entre precipícios de rochas, e à medida em que o som se intensificava, tive uma sensação de saudade.
Era como se estivesse com o coração apertado sentindo em não ter mais gente ali, pertinho, contemplando aquele quadro expressionista comigo, pessoas que aprendi a amar.
Já percebeu que quando você ver uma coisa bonita quer que mais gente esteja vendo contigo?
Escolhi uma pedra trampolim, e marquei com o JG e A Cris para ir ter com eles na prainha, eu iria agora descer pelo rio, deixando-me levar pelas correntes.
Convoquei a Cris para documentar
Cristina, para desespero dela, assumiu a missão. Não sem antes externar sua preocupação, com ênfase!
Aí pulei, e deixei as águas me levarem, que delícia!
Encontrei-me com eles na prainha, e pude perceber que o JG ficou todo orgulhoso. Seu pai também veio pela água, a exemplo de uns marombados que dividiam o pedaço.
Depois de horas de banho, deu fome e voltamos por uma trilha mais amena, que o Joaquim também indicara.
Ai, fez-se o milagre. Adentramos na cozinha, sala de jantar da dona Odésia e sentimos uma paz tamanha.
Ela fundou seu estabelecimento há 25 anos. Trabalha com o irmão, o Joaquim, dois filhos e uma nora.
Entramos na casa-restaurante pelo alpendre. Lá nos fundos fica a "sala de jantar" com mesas amplas e comunitárias, daquelas de madeira maciça e bancos largos. Numa das paredes, uma enorme lapinha, com imagens de Nossa Senhora, e alguns retratos na parede. Presumo que sejam parentes falecidos.
Aquele parede assumia jeito deCatedral, tal a mística energia que dali fluía.
Para se servir, entramos no recinto sagrado da cozinha. Ali, eles foram além do conceito de cozinha de portas abertas. Serve-se literalmente nas panelas, e numa larga mesa, ainda na cozinha, estão expostos legumes e saladas, simples e fartas. Com combinações do tipo jiló com cenoura. Ou purê de abóbora, com pedacinhos de alho frito nele. Presto atenção numa coluna de panelas bem areadas, mas parecendo espelhos. Limpas de dá gosto de se ver.
Do alto, lá nas vigas de madeira, um imenso tucano nos fitava. Numa queimada ele perdeu-se de seus pais e foi adotado pelo Joaquim. E ali ficou. "Só come e caga, mas é o nosso mascote e vive solto".
Ali, naquele fim de mundo de meu "Jesuis, tudo falava amor.
Tudo tinha o complexo charme do simples, pouco visível aos olhos urbanos. Tudo bem asseado e cheiroso. Deus se esconde nesses lugares para descansar da gente.
E sem som berrante. Ufa! O único som era o dos pássaros. Delícia.
O cheiro dos temperos e ervas inebriava a cozinha. Tomei logo uma dose de pinga, feita por ela com ervas aromáticas, e estalei os lábios fazendo um sinal de está muito, muito, muito gostosa.
Ela sorriu com um sorriso lua cheia de candura.
A comida foi melhor do que qualquer restaurante metido a gourmet, de São Jorge na Chapada dos Veadeiros, desses estilosos que vemos por ai.
E a comida, benza Deus de deliciosa!!!
Todo saboroso, bem temperado. E, entrar na cozinha para servir-se novamente era um barato. O sistema era de “pague e coma o que aguentar”, por R$ 35,00 por pessoa, uma pechincha já que não havia cobrança para acessar os rios.
Quando eu ia repetir o prato, provando ora uma fritada de legumes, ora uma salada de cenoura com jiló, parava pra prosear com ela.
Que paz dela emana! Que paz!
Lembrei de Dona Benta, do sitio do Pica Pau Amarelo, então
fiquei matutando. Belas são as pessoas.
Por mais esplendido que sejam um encontro de rios, nada se compara ao encontro de seres que se veem como iguais, e que se propõe a serem amigos, mesmo sem nunca antes terem se visto.
Assim foi com a Odésia e o Joaquim, parece que já nos conhecíamos a tempos.
Repeti o prato umas quatro vezes, só para entrar no recinto sagrado de sua cozinha, me servir das panelas e trocar mais um dedo de prosa.
Ela sorriu, e me alertou: “Sr. Ricardo, nessa panela é doce, não é feijão.”
Ambos sorrimos, e ela disse que o erro é comum, dado que a cor e textura do doce se parece.
Então, coloquei o feijão e soltei um: UAUU!!!
Daqueles de tão bom que daria para comer como recheio de pão.
Agradeci a Deus aquele encontro surpreendente, no meio do nada, num rancho fundo.
Almoçar na Odésia é uma experiência, tão ou mais significante do que a do Encontro dos Rios.
E, se você gosta de plantas, flores e pássaros, vai enlouquecer.
Odésia fez de cada vaso ou coisa similar que achou, um jardim.
Então, é planta, horta e flores para todo lugar.
Uma delícia. É como almoçar num jardim.
Mas, se você ficar sentado na mesa, não verá nada disso.
Tem que se levantar e conversar com as pessoas, circular pelo lugar atento, tem que ter um espírito apreciativo do bom, do belo e do virtuoso.
Na saída, já íntimos, ganhamos uma muda de planta deles.
Sei o que significa, e o valor, do gesto de quem doa uma muda de planta. Ah, como sei!
Eles queriam nos dizer que fomos aceitos e amados.
Dona Odésia e Joaquim, pacatos cidadãos brasileiros, de alma mansa, generosa e que gostam de servir.
De coração saudoso, acionei o motor do carro e parti.
Matutando comigo, vou retribuir essa muda, trazendo uma planta para ela, quando aqui vier novamente trazendo meus pais e filhos.
E, enquanto não volto, retribuo postando para vocês essa rica experiência.

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