Doces Memórias, para os Barros. (Por Ricardo de Faria Barros)


Acordei bem cedo e botei minha melhor roupa de apanhador de lembranças, e saí para recolhê-las nos campos do passado.
Aí, posicionei-me no jardim, e fiquei esperando o sol nascer.
Perto de meus pés, passava uma tropa de formigas, sem importarem-se com meus devaneios, seguindo ritmos de acompanhar.
Uma delas, a mais barulhenta, acenava para as outras com antenas, ensinando-lhes o caminho das melhores folhas orvalhadas.
Daquelas que enquanto se come, mata-se a sede. Delícia.
Fechei os olhos e senti uma brisa faceira acarinhar meu rosto. Senti que eu respirava. Engraçado, nem sempre sinto que respiro.
O silêncio era tanto que até podia ouvir as asas de beija-flores, tomando o café da manhã, bem nas minha costas, onde alimentavam-se de florezinhas.
Sinto-me como se estivesse num teatro, ouvindo uma orquestra em seus primeiros acordes.
Uma borboleta dá um rasante à minha frente, não está com jeito de quem acordou agora, e sim de quem vem chegando do baile.
Gosto das imensidões do silêncio. E, quando estou naqueles prados de mim mesmo, fico mentalmente catalogando o maior número de sons que vão se acordando. Faz parte do ofício de apanhador de memórias escutar os sons do silêncio.
Lá nos porões das lembranças, escuto o som de chocalhos, bem ritmados. Vovô João vem tangendo as poucas vacas que criava, e que abastecima seu lar com o leite matinal.
O quarto em que eu dormia, quando ia para o sitio de vovô, fazia divisa com o curral.
Até hoje esse som de chocalho, além do aroma de estrume de vaca, me acalmam!
Meus avós paternos moravam numa propriedade rural próxima de Juazeirinho-PB.
Lá não tinha energia elétrica e a vida era muito simples.
Pelas 20h todos já estavam dormindo, não sem antes tomarmos a sopa que a vovó fazia, ou o "angu com leite".
Aí, pelas 4 da manhã eu acordava com o saboroso som do chocalho das vacas.
Aquilo me dava uma paz tremenda. Eu sabia que vovô estava ali, ao lado de meu quarto, e que nada de ruim podia me acontecer. Afinal, vovô venceu os monstros da escuridão.
Pelas cinco da manhã o barulho de panelas entrava no quarto, junto com o cheiro de fumaça, que agora disputava com o de merda de vaca, as primícias de aroma de um dia no sertão da Paraíba.
Menino travesso, eu pulava logo da cama e ia ter com a vovó. Vovó era de muita conversa.
Vovô, de fala meiga, pausada e muito sábia. Formavam um bom par.
O sol começava a nascer e seus raios contracenavam com a fumaça na cozinha, formando uma nevoa branca, que deixava a cozinha mais parecendo com os Alpes Suíços.
O galo, sempre atrasado, dava seu ar da graça, pelas 5h30min.
E, já manhã vindoura, algumas galinhas histéricas anunciavam que pariram vida, em ninhais escondidos pelo imenso quintal.
Alguns eram descobertos, e a vovó fazia com eles uma fritada, na chapa do fogão. Misturando-os ao cuscuz, para render mais.
Aí, botava um caneco de leite para os netos, e deitava o pó de café no coador.
Agora sim, era cheiro de café, de fumaça, de leite, de merda de vaca, agora a manhã nascia realmente.
Vovô pegava uma espécie de bisaco de tecido, colocava no ombro, e saia para catar algodão. Eu ia atrás dele, como cachorrinho adestrado.
Pelas 8hrs, ele voltava com os bisacos cheios. E partia para outras tarefas. A saga num sítio não para. É cuidar tirar leite, é procurar ovos, é arar, é semear, é adubar, é cuidar das cercas, é vacinar, é alimentar a criação, é fazer ração, é ser parteiro de vaca, cabra, é selar jumentos para ir buscar água, em caçuás de madeira.
Eu acompanhava tudo aquilo com olhos maravilhados, de menino curioso e buchudo da cidade grande, que pensava que o leite nascia das caixinhas.
Pelas 9hrs saía com os primos para aventuras na caatinga. Do tipo, fazer castelos e tuneis no rio seco, que passava embaixo da ponte da linha férrea.
Era encostar o ouvido nos trilhos para sentir se o trem se aproximava.
Era pegar pedras, para atiçar os maribondos "caboclos" que faziam ninho embaixo da ponte.
E, depois correr mais rápido que um raio, tentando escapar da fúria deles, o que nem sempre conseguíamos, e aí tome choro e dor.
Atrás da casa tinha enormes árvores, chamadas de algarobas. que davam uma sombra gostosa.
Nosso lugar para planejar as "caçadas" na caatinga. Era nosso escritório.
Eu era o único, dos primos, que tinha uma espingarda 28, boa pra pegar avoantes de todos os tipos.
Aí, nos embreávamos pela Caatinga espinhenta, sentindo aquele aroma das flores da jurema, que anunciavam que haveria inverno.
A Caatinga tem um perfume que antes de morrer ainda quero senti-lo novamente. Cheira e enebria como a mulher amada.
Eu admirava a arte de andar na caatinga de meus primos. Caatinga não é mata de se perder. Eles sabiam se achar, e eu me sentia o mais forte dos moleques, andando ao lado deles.
Eu levava a espingarda, mas os fortes eram eles.
Depois de caminhar um légua, parávamos em resto de água, esperando que os avoantes chegassem.
Pelas 11hrs, eles viam tomar a pouca água daquele local. E eu, e meus primos, tirávamos a vida deles. Confesso-lhes.
Após matar uns 30, colocávamos no bisaco de couro e voltávamos pra casa, com fome. Antes do almoço, tomávamos banho no barreiro que tinha do lado da casa. Pois, não se podia tomar banho de barreiro depois do almoço, dava nó nas tripas.
Ali mesmo, no terreiro da casa, um a um íamos tratando os bichos, retirando as tripas, limpando com uma água de bacia de zinco, daquelas bem grandes.
Depois, salgávamos e levávamos uns 5 para vovó fritar. Mas, uma caçada de 30 só aconteceu uma vez. Geralmente eram dois avoantes, por légua caminhada, uns 6 km.
Naquele dia, um bando migrou e passou pelo sitio de nosso avós.
Colocávamos eles para "secarem" no alto de uma telha, vigiando para que os gatos ou gaviões não jantassem eles primeiro que nós.
No almoço vovó fazia arroz de leite, carne de galinha ou de bode, e muito feijão.
Os avoantes eram a sobremesa.
Vovô nos perguntou quanto caçamos, e, todos orgulhoso, dissemos-lhe que uns 30.
Ele perguntou quanto comeríamos no almoço, dizemos que serão cinco deles.
Aí ele nos perguntou por que tínhamos matado 30, se só comeríamos cinco?
Aí ele nos disse que alguns daqueles podiam ainda botar um ovo, no dia seguinte, e erar a vida para as próximas férias.
Só hoje tenho a compreensão da aula que vovô nos deu. Como era sábio.
Vovô nunca quis que "furassem" um poço no seu sítio. Ele disse que não queria ficar com seu título de eleitor na casa do "benfeitor". Que autonomia! Mesmo que lhe custasse andar muitas léguas, com jumentos para buscar água. Mas, ele nunca se vendeu aos coronéis locais.
Perto das 17hrs os jumentos uivavam, anunciando que o sol se ia.
E uma paz invadia o lugar. Rapidamente, para pegar a última gota de luz, tomávamos banho de cuia.
Botávamos roupa de noite, e jantávamos cuscuz com leite. Aí vovó saia acendendo os lampiões a querosene, que agora davam o cheiro da noite, e invadiam com sua luz um breu de monstros à nossa espreita.
Um galo esclerosado cantava alto, achando que era amanhecer.
As galinhas se aninhavam no alto das algarobas, com medo de raposas.
E o céu sem nuvens, iluminava-se de estrelas.
Vovô botava a cadeira no terreiro, ligava o rádio de pilha e escutava o canto da Ave Maria.
Era 18hrs, e a noite galopava. Nós, ficávamos ao seu lado, olhando para escuridão lá do terreiro de fora, esperando trem, ou brincando de ver onde a vaga-lume ia acender sua traseira e iluminar.
Em contida reverência, como admirávamos nosso avô. Até, falávamos baixinho, para respeitar seu silêncio que nos falava tanto.
Vovô entendia dos saberes do sertão, acho até que ele conversava com cada ser vivente daquele lugar.
Mania que passou para mim, a de conversar com formigas, borboletas e beija-flor, entre outros.
Ergo a vista e vejo raras borboletas azuis, ao fundo escuto JG correndo atrás de uma bola, atrás de mim sinto que vem chegando um aroma de brisa aracati, que me abraça por trás.
Olhos para os lados como quem a procurar mais lembranças. Mas elas se foram, pelos abismos de minha amnésia, e consolo-me com as que ainda evoquei.
É preciso lembrar de vez por outra vestir as roupas de apanhadores de memórias, para que elas não se esvaziem de nós mesmos.
Entro no Google Maps, acesso Juazeirinho, sigo a linha do trem, pela estradinha até o sitio do vovô.
Vejo que o Street View filmou a estrada. E faço uma maravilhosa viagem virtual. Passo pela ponte do trem, e temo os maribondos, subo a ladeira, a casa do vovô é mais acima. Aí, o Street deixou de filmar. Mas, já foi bom demais.
Até vi o rio que quase nos mata, que passava por debaixo da ponte, e que num dia qualquer uma Cabeça de Água desse por ele e nos dá um caldo. Ainda bem que éramos espertos e saímos logo de dentro dele.
E assim vai-se o dia...

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