Fio 1000 Egípcio (Por Ricardo de Faria Barros)


Um casal amigo resolveu comemorar o cinquentenário de vida deles, numa celebração conjunta com o nome: "Cem Motivos para Louvar".
Achei a ideia de uma grandeza e generosidade espirituais tremenda.
Senti-me honrado em ter sido convidado e ter podido presenciar tanto amor reunido em forma de gente.
Depois da entrega dos presentes e os parabéns, acheguei-me num conhecido e perguntei o que o nosso grupo deu de presente, como fruto de uma cota que rolou.
Ele me disse que compramos um jogo cama e banho, de "fio egípcio".
Fiz uma cara de:
"O que, homi? Nossos amigos fazem 100 anos e damos toalha e lençol?"
Aí, aquela alma mansa, boa e sábia, vendo minha total ignorância para tratados de fios de algodão, ensinou-me:
- Os fios egípcios são oriundos de um raro algodão, de fibra longa, que só tem no Egito. E que em cada trama (uma polegada quadrada, ou 6,45cm2) há 1.000 fios entrelaçados, o que confere ao tecido uma maciez e durabilidade excepcionais, inigualável!
Fazendo uma vistoria, em casa, descobri que a maioria das camisas, lençóis e toalhas por aqui tem de 60 à 120 fios.
Ou seja, o Egito passou bem longe. rsrs
Meu amigo, naquela noite, sacou uma pérola: "Quem recebe esse tipo de presente deverá guardá-lo para usar numa ocasião especial."
Aí, foi minha hora de ensiná-lo algo.
Amigo, após 50 anos, todo dia deve ser especial, toda ocasião deve ser especial, e não temos que guardar mais nada para um dia depois.
Com isso não digo que devemos ser perdulários, ou o outro extremo, o acumulador de coisas materiais.
Temos que encontrar um termo do meio, entre usufruir e economizar.
Sabe aquela xícara linda, como um tesouro perfilada na cristaleira da mamãe?
Quem sabe não é a hora de se dar ao direito de tomar um chá nela?
Sabe aquela louça linda, em porcelana rosa que fica guardada como bem de família, que tal convidar os mais chegados para tomar uma sopa nela?
Nunca esqueci um conjunto de Cerâmicas Marajoara que minha esposa trouxe de Belém, e de nossas discussões por ela não me deixá-las as usar.
Ela guarda "para um dia especial".
Outro dia papai fez feijoada aqui em casa. Daquelas pra toda a família. É ou não é uma ocasião especial?
Agora lembro que meu filho, o Rodrigo, também fez uma feijoada aqui. É ou não é uma ocasião especial?
E as cerâmicas continuam virgens.
"Para não sujar, para não quebrar, para não desgastá-las...".
Acabou. Hoje as libertei dessa sina, de serem sempre deixada para trás, à espera de ocasiões especiais.
Vou fazer uma feijoada e inaugurá-las. Será meu dia especial, afinal nunca fiz feijoada.
É ou não é algo especial fazer um prato pela primeira vez?
Quanto aos meus amigos, usem os fios Egípcios bem muito, e em muitas ocasiões a que se permitam perceberem como especiais.
Não guardem no maleiro até que virem esquecimento.
Não deixem isso só ser lembrando, de que não usaram, no instante em que a vida nos prega sua peça mais sorrateira, aquela na qual duvido você saber o dia ou noite em que chegará.
Use seus fios egípcios!
A vida vai acontecendo é no caminho, e ficamos esperando o alvo, aquilo de especial acontecer, quando no caminho um monte de coisas especiais vão aparecendo, e adiamos o seu desfrutar.
E, não estou mais na idade de adiamentos. Então, à feijoada!
Quer ocasião mais especial do que a de se estar vivo?
Hoje vi o drama de um pai que deixou o filho no Kumon, e ao buscá-lo não o encontrou lá.
O menino travesso, esperou o pai sair, e fugiu. Deveria ter uns 12 anos. Todos ficaram mobilizados, deixei meu café de lado e entrei no grupo que bateu aquela quadra comercial atrás de um menininho de cabelos cacheados e louros.
Depois de uns 30 min, o pai já quase desfalecido sentado na calçada, com um olhar impotente para o vazio, imaginando o pior, eis que a mãe chega dirigindo um outro carro, e o filho vinha com ela.
Ela nos diz que o moleque acertou o caminho de volta para casa, andando sozinho uns 3 Km.
E, como o celular do maridão estava descarregado, ela não pode avisá-lo.
Relaxamos todos. Menos o garoto, que estava com a bunda quente, e merecidamente.
Aquele casal, tem ou não tem uma razão para se aninharem em fios egípcios nessa noite?
Ou, abrirem aquele vinho que guardam para um dia especial.
O dia especial é hoje, o filho que estava perdido voltou.
O problema é que estamos perdendo a capacidade de ver "espelciar" nossos instantes, sentindo em nosso ser o quanto são mágicos, místicos, misteriosos e encantados de bom, de belos e de virtuosos.
Tudo vai ficando opaco, pelos olhos turvos da indiferença, e perdemos a capacidade de ver o quanto o dia a dia tem de coisas especiais. Aí, atribuímos isso a um fato inédito, esperando para um dia qualquer, que nunca chega.
Lembrei que ganhei do amigo Júnior um pacote com camarões, do tipo exportação. Guardei para um dia especial, mas será em 2017, em outubro, nos meus 53 anos.
Claro, se algo de mais especial não ocorrer antes disso.
Como, por exemplo, receber a visita do casal amigo - dos cinquentenários de Andre Schirmer e Cristina De Oliveira Schirmer aqui em casa, pois sei que amam camarão.
Aí, eles irão para a panela.
Anteciparei a ocasião especial, antes planejada. Essa é a arte.
Fiquei pensando que também temos pessoas Fio 1000 Egípcio em nosso viver.
Pessoas raras, macias, de longos valores, extremamente resistentes à desesperança e que nos colocam para cima.
Uma pena que com elas também aconteça isso. Vamos deixando-as guardadas no "maleiro" como se as tivéssemos para sempre conosco.
Sem dizê-las o quanto elas enriquecem nosso viver.
Só sabemos a falta, quando um dia elas partirem de nosso viver.
Aí, a traça da história se encarregará de corroer o tecido de nosso coração. Sendo tarde demais para valorizá-las e dizer o quanto nós lhes amamos. Pois, esperávamos uma ocasião especial para fazê-lo.

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