Hoje amanheci Cartolando a vida.


Como se conversasse contigo, num banco de jardim, gostaria de te falar desse gênio da música popular brasileira, e dessa música que pode ser o enredo de muitas vidas peregrinas e Severinas, mundo afora, navegantes à procura de si mesmas.
E que, nessa procura, vão se renovando e dando frutos por onde passam. Cartola foi uma daquelas pessoas que só foi descoberta e desabrochou após os 60 anos.
Basta dizer que seu primeiro disco foi lançado em 1974, quando ele estava prestes a fazer 64 anos. Uma jornada de vida épica, digna de um filme, e dos bons.
De pedreiro à lavador de carro, tudo fez para sobreviver.
Dos tempos da construção civil, como pintor de paredes, ganhou o apelido de cartola. É que ele usava um chapéu tipo-coco com abas retas na base. Assim o fazia para não sujar a cabeça com tinta e poeira da obra, já se antevia o poeta nos gestos que o destacavam da multidão.
Ele compôs 170 músicas.
Muitas, com direitos de reprodução vendidos, por uns trocados, para que sobrevivesse mais uns meses.
Fundou a Mangueira e, tempos depois, revoltou-se com a falta de musicalidade dos ensaios no barracão, e o excesso de instrumentos de percussão; dificultando o entendimento das melodias dos sambas-canção.
Era um lorde inglês, e sempre tratava a todos com respeito e atenção.
Um dia, numa entrevista memorável que concedeu à TV Cultura, em 1978, no Programa Vox Populi, foi perguntado o porquê de não estar cuidando da saúde, continuando a beber e a fumar.
Ele parou, pensou, e respondeu que estava se cuidando sim. "Parei de beber e de fumar para lutar contra a doença". Que era um câncer.
“Mas, é só essa doença sarar que volto. Como vou compor sem um traguinho e um cigarro?”.
Esse era o Cartola.
Uma pedra angular em sua vida, talvez a mais importante, foi Dona Zica.
Uma Zica diferente das de agora, uma Zica divina.
Dona Zica também dá um filme. Ela apaixonou-se pelas músicas que Cartola cantava, na década de 50. Um dia, ambos viúvos, ela aproximou-se dele e o resgatou para a vida.
Amando-o intensamente, admirando e recolhendo fragmentos de sua obra. Dando—lhe estrutura e ordem.
Zica está para Cartola como aquelas hastes que apoiam plantas trepadeiras estão para elas.
Que mulher! Que amor.
Zica andava reclamando que ele nunca tinha-lhe presenteado com uma canção. E Cartola nunca escreveu nada por encomenda.
Ele dizia que não conseguia.
Um belo dia ele cavocava a terra, cuidando de duas roseiras que comprara na Tijuca. Cartola amava as flores.
Zica aproximou-se e perguntou-lhe:
“Cartola, o que você está fazendo com essas roseiras que elas estão magníficas, exuberantes, você anda conversando com elas?”
- “Zica, Zica, as rosas não falam”.
Ele diz que ficou com aquilo encasquetado, três dias depois, compôs As Rosas Não Falam e presenteou Dona Zica com a canção, homenageando-o numa poesia em forma que só um gênio faria:
[Zica...] “As rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti”.
Na década de 60, preocupados com a miséria do casal e a genialidade de Cartola ficar esquecida, os amigos, boêmios, músicos, repórteres ajudaram-no a montar um bar e restaurante, para que ele e Zica tivessem uma renda fixa.
Era o Zicartola, que virou um pólo cultural e até de resistência à ditadura no período de 1963 à 1965.
Ze Keti, Elza Soares, Sargento, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Clara Nunes, Chico Buarque, Sergio Cabral, Paulinho da Viola, Hermínio Belo de Carvalho e Candeia frequentavam assiduamente o local, que virou point na Rua da Carioca, Centro do RJ.
Depois, o estabelecimento foi vendido à Jackson do Pandeiro. Pois, o tino administrativo não era o forte de Cartola, e o Zicartola estava faliu.
Houve pessoas fundamentais na sua trajetória: O Marcos Pereira, foi um deles, um grande produtor cultural brasileiro, grave esses nome e pesquise sobre ele. Um trabalho de resgate de músicos brasileiros digno de um filme também.
Marcos acreditou nele e produziu seus dois primeiros discos, dos quatro que lançou (1974, 1976, 1977 e 1979 ).
Cartola era generoso. Imagine a dificuldade em lançar um disco! O único que lançou em que não colocou em todas as faixas, pelo menos uma música de um amigo, foi seu primeiro, o 1974.
Nos outros três que lançou, sempre escolheu uma faixa para homenagear um amigo.
No seu segundo disco, o de 1976, Cartola – agora com 66 anos, homenageou Candeia. Candeia era um assíduo frequentador das rodas de samba do Zicartola e foi um dos fundadores da Portela.
Candeia, faleceu em 1978, aos 43 anos, era um compositor genial. Por volta do final do ano de 1975, o jornalista e escritor Juarez Barroso, andava meio perdido na vida, chegou perto dele (Cadeia estava paralítico e usando cadeira de rodas) e lhe disse que tinha um tema para ele compor um samba: “preciso me encontrar”.
Candeia identificou-se de pronto com o tema, e em em dois dias compôs e musicou essa obra prima:
“ Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Quando eu me encontrar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer, quero viver
Deixe-me ir, preciso andar…”
Quando Cartola teve acesso a essa canção foi amor à primeira vista. E ele fez uma escolha difícil. Não esqueçam que um disco de Vinil tem 12 músicas. Cartola quando lançou o seu primeiro disco, em 1974, já tinha mais de 120 músicas compostas.
Então, mesmo que ele não tivesse produzido mais nada, de 1974-1976, o que foi justamente o contrário, ele ainda teria 108 músicas para escolher 12, para o seu segundo disco.
E a gravação de um disco era o princípio da independência de um cantor. Um processo caro, e que só assim permitiria a distribuição do material pelas rádios, país afora, nos tempos de não-internet.
Cartola reservou então, uma das faixas, para Preciso Me Encontrar, música do amigo Candeia.
Que gesto bonito! Quanta doação...
Escute o áudio do vídeo que ilustra essa canção com fone de ouvido. Perceba que nos primeiros 55 segundos, toda a canção é percorrida só com o toque de dois instrumentos: um violão de sete cordas, tocado pelo Dino Sete Cordas e um Fagote, tocado pelo Airton Barbosa.
Perceba que nos primeiros 5 segundos, começa só o violão, mixado apenas do lado esquerdo do áudio.
Aos 6 segundos, entra o fagote, brilhantemente tocado pelo Airton Barbosa.
Mixado do lado direito do áudio. Escute com um headphone que ouvirá esse enigma musical magistral.
Nos próximos 44 segundos, há um encontro do violão com o fagote. Como se o violão tivesse partido sozinho, e após 5 segundos da vida, encontrou-se com o fagote, e agora juntos, compõe a melodia da vida.
É ou não é como nossa vida. Percebam que cada um deles, o fagote e o violão estão sendo tocados no canal direito e esquerdo do áudio, mas que agora fazem um dueto em uníssono.
Essa canção sempre me marcou. Ela fala de mudança, de ruptura, de autoestima.
Ela fala de renascimento, de renovo.
Para mim, é um brado à vida. Uma vida que se encontra, a cada som da esperança que toca no coração.
Uma vida que se assombra com o sol, com as águas, os pássaros e que, peregrina, se descobre a cada esquina.
Obrigado Candeia, obrigado Cartola por tanto ensinamento e obrigado ao sujeito oculto por trás da ilha de mixagem do Vinil que teve essa genialidade de dividir os sonhos do fagote e violão, e ao final promover um encontro genial.

Veja a bela canção aqui:

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