Olhe para mim! (Autor Ricardo de Faria Barros)

Olhe para mim! (Autor Ricardo de Faria Barros)
Era a melhor hora do dia para observação de movimento de feira livre.
Antes das sete da manhã, de um domingo, na Feira de São Sebastião-DF, eu já me posicionava no escritório de catação de cotidianidades populares, que instalo na única mesa externa da pastelaria La Deyse, para a qual já tenho direito de posse – por fidelidade amorosa.
Deyse logo se achega e me serve com meus quitutes prediletos. Café, recém-passado, seguido de pastel com caldo de cana.
Sorvo o café e refresco a alma!
Abrindo em meu ser as portas para a manhã que antes era a vindoura, prestando atenção ao seu nascimento em meu ser, tal como se presta atenção ao milagre diário de renovação do frescor da vida quando se recebe a rejuvenescedora Brisa Aracati, soprando esperanças em todos que habitam nas proximidades do Rio Jaguaribe, no Ceará.
Fecho os olhos e escuto o barulho de feira livre!.
Aquele tipo de burburinho que tem sabor de vida.
Ao meu lado, a Iêmi prepara sua mesa de hortaliças. Vaidosa, de longos cabelos negros, entre uma alface e outro que dispõe em pilhas verdes-claras, ela se olha no espelhinho de feira-livre, retocando a maquiagem com um pincel. À sua maneira, ela também se abre à manhã vindoura que já acontece no agora, nem sempre percebido.
Uma voz interrompe meu deleite quase espiritual.
“Sr. Ricardo, olha”.
À minha frente, o Francisco.
- Bom dia Francisco! Estou vendo, a feira está bonita, não é?
“Não Sr. Ricardo, olha!”
E aponta para seu crachá, seu “jaleco” bordado, e estufa o peito todo garboso.
Eu então percebo o que ele quer me mostrar e encho meu coração de ternura.
Ele contou-me que participou de uma reunião com o pessoal da “prefeitura”, a turma que administra as feiras livres. E que ouviu que era preciso melhorar a higiene e a qualidade dos produtos; o manuseio e a apresentação dos feirantes, atraindo mais clientes.
 E que seria bom que todos usassem um jaleco personalizado, luvas, toucas e um crachá de produtor rural.
Ele me contou que saiu da reunião e foi logo mandar fazer seu kit, investindo por conta própria uns R$ 100,00 nele.
 E, que nesse domingo, estava muito feliz!
Que até um cliente já tinha elogiado seu novo visual e forma de atender.
Perguntei-lhe: quantos participaram da reunião? Ele me falou que praticamente todos, daquele setor, estiveram presentes. E que tinha sido no final da feira de domingo passado.
Olhei ao redor e só vi a Iêmi com a “farda”. Até onde a vista alcançava, cobrindo com ela uns 30 feirantes, não vi mais ninguém além deles.
Pedi outro café, o dia renderia em observação.
Eu posso estar enganado, mas percebi que ambos estavam mais entusiasmados, e que não paravam de olhar para o crachá.
E que repetiam a história da reunião para todo cliente que chegava, do tipo curioso por coisas de gente, como eu.
Francisco limpava cada garrafa do leite das vacas de sua pequena propriedade. Mas parecia que as polia, de tanto esmero.
Arrumou a toalha da frágil mesa, umas 3 vezes, deixando-a impecável com seu alisamento.
A toalha era nova. Branquinha, branquinha.
Iêmi, dava umas viradas no cabelo, tipo para mostrar o crachá que porventura eles o encobriam.
Fui nela e soltei um: “Iêmi, como seu crachá ficou bonito”.
Aí ela derreteu-se toda de amor, sentindo-se notada por mim, e ofereceu-me para vender uma linda graviola que trouxera. E que escondera para a hora das frutas.
Hora das frutas? Como assim? Ela explicou-me que a feira tem um rito. Pelas 10hrs é a hora que mais se vende frutas. Pois é a hora em que os clientes olham se sobrou algum dinheiro ainda, após comprarem os galináceos, temperos, legumes e hortaliças, e investem o saldo em frutas.
Ahh!!! Sábia Iêmi. Comprei sua graviola , voltei-me a sentar e passei a contemplá-los.
Eu fiquei embevecido com o orgulho com o qual apresentavam os frutos de seu trabalho. Os outros feirantes, eram apenas outros, perto deles.
Quase autômatos, nas suas interações com a clientela.
Eles não.
Eles estufavam o peito, sorriam, seduziam com seu atendimento a todos.
Era como se agora eles tivessem uma identidade maior, aquele vestuário e crachá, mexeu com a autoestima deles, de forma positiva.
Lembrei-me de meu orgulho quando entreguei o meu primeiro cartão corporativo da Ânimo.
Eu queria até abraçar a pessoa que recebeu, tal significado aquele gesto teve para mim.
Para a pessoa, mais um que recebe. Para mim, o primeiro que entreguei. Tenho cartão, logo existo no mundo corporativo. Foi o que pensei. rsrs
Para além do asfalto da realidade, somos seres de dimensões subjetivas e intangíveis, que beiram à poesia e magia em ser, fazer e acontecer.
Tirei foto de Francisco. E não tive coragem de tirar foto da Iêmi, pois percebi que ela não gosta de registros e a respeito.
 Francisco posou todo imponente. Os vizinhos de barracas ficaram tirando onda. Os mesmos que foram para a reunião, ouviram os mesmos ensinamentos, e com eles não alteram o destino de suas vidas.
Ou seja, não lideraram mudanças.
Costumo dizer que líderes são pessoas comuns que fazem coisas incomuns.
Francisco e Iêmi são líderes, de sua categoria. São exemplos, próximo domingo outros podem se sentir inspirados por eles e também adotarem a prática deles.
Mas, o que melhor aprendi foi o valor de se ter um nome para mostrar.
De não ser mais um feirante. Agora eles tinham um nome.
Tinham uma identidade profissional e eram outros.
Como vamos nos perdendo desse gostinho de fazer as coisas comuns se tornarem incomuns.
Outro dia estava aguardando um vôo de JP para Brasília, já no Portão de Embarque.
Profissionais, de empresas diferentes, organizavam as filas de vôos simultâneos que sairiam a pouco.
A da Avianca, chama-se Juliene. Ela lidou com uns 100 passageiros, nas mais diferentes filas: Preferenciais; Poltronas de 16 a 30 e as demais; com uma paz e alegria que eram destaques.
Aos desavisados, ou gente que não entedia direito as orientações e entravam na fila errada, ela sorria, dizia “Eita está com pressa, espere só um bocadinho aqui que já chamo sua fila”. E seguia com os demais.
Uma jovenzinha cadeirante apresentou para ela os documentos. Aí ela fez algo inusitado, e fenomenal, ela disse para menina: “Quer que eu lhe empurre até o avião, eu sei descer essa rampa como um foguete, até tiraram-me dessa função, de tão rápida que eu era. Ou prefere seguir com o Mário?”.
E ambas caíram na gargalhada. Nunca tinha presenciado tanto amor em relação às pessoas com mobilidade reduzida, em forma de um saudável humor.
Não tinha como ficar irado com ela. Impossível.
Aí observei a que operava o mesmo serviço, numa empresa concorrente. Eu não via uma pessoa ali.
Não que ela atendesse mal, longe disso. Mas, não havia chama interior. Não havia relação com seus clientes. Ela repetia, mecanicamente, o mesmo que a outra repetia, sobre a disposição das filas. Mas, faltava alma no procedimento. Os seus clientes tornaram-se um “bilhete de entrada”. Apenas isso.
Nós não. Dava até gosto ver a Juliene conferindo os documentos, sorrindo, quase nos abraçando ao desejar uma boa viagem, sem perder o ritmo em fazer a fila andar.
Iêmi, Juliene e Francisco estão fazendo diferente o que todo mundo faz igual.
Eles encontraram seu jeito de marcarem sua presença entre nós, de tornarem o lugar em que habitam melhor do que acharam, e de deixarem seu legado no trabalho que fazem.
Estão saindo do lugar comum e sem energia de ser apenas mais um dos que fazem a mesma coisa, todos os dias, sem chama alguma.
Eles até fazem as mesmas coisas, todos os dias, contudo botam a eles mesmos nelas e tornam: as coisas, a eles e a nós diferentes do que éramos antes de seu toque de amor, cuidado e atenção. Nos fazem ter uma experiência prazerosa como clientes. E, quem não deseja por isso nos dias atuais, de pessoas e interações tão mecânicas?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores