A carona (Por Ricardo de Faria Barros)


Saí cedo de casa, em direção à Ânimo, eu tinha um atendimento psicológico agendado para as 10hrs.
O dia estava lindo, com o céu de Brasília revelando-se em todo seu fulgor.
 Aí, agradeci a Deus o dom da vida e a Sua paz encheu meu ser.
No turbilhão de pensamentos, a agenda do dia passava qual um filme. Atendimento na clínica, data limite para envio de proposta de palestra, e aula à noite.
Dia intenso e bom.
E seria dia de primeira sessão na clínica, com paciente novo. Sempre fico com muita expectativa nos primeiros atendimentos da clínica.
Será que conseguirei ajudar? Será que saberei lidar com as situações a mim apresentadas, tendo uma palavra de bênção, uma orientação cabível, ou simplesmente um coração acolhedor e do tipo colo de mãe?
Na cancela do condomínio, percebo que se dirige ao ponto de ônibus uma jovem.
Que com dificuldade carrega uma pilha de livros.
Pergunto-lhe se aceita uma carona, até uma parada com maior disponibilidade de linhas, que passo por ela no trajeto para o trabalho.
Ela respondeu que sim. Notei um certo alívio.
Um silêncio respeitoso se fez no carro.
Botei uma música baixinha, e tentei quebrar o clima de ansiedade, talvez medo, comentando sobre o clima.
Comentários sobre o clima são os mais pobres num processo de comunicação, mas podem ajudar a quebrar o gelo. Caso não se fique apenas nele.
Notando um certo sotaque, perguntei-lhe se era de Brasília. Ela falou-me que é da Bahia, que chegou aqui há dois anos, e que está cumprindo à risca minha orientação: tirando peça a peça de sua mala, e guardando nas gavetas.
Fiquei atônito. De onde conhecia aquela jovem?
Minha amnésia estava me traindo novamente. Fiz cara de que entendia o que ela falava, e ela continuou:
“Estou desfazendo minhas malas emocionais”, como o senhor me ensinou, naquele dia em que me deu uma carona”.
Uauuu!
Lembrei-me. E já fazia uns 3 meses. Naquela carona, ela me disse que estava sofrendo muito a adaptação à Brasília, e que tinha muitas saudades de sua terrinha natal.
Que estava em casa de parentes e que veio para estudar para concursos, nos bons cursinhos daqui.
E foi nessa hora que a orientei a melhor lidar com o luto, da saudade da terra natal e amigos que por lá deixou, desfazendo as malas emocionais.
Já notou que têm horas em que deixamos essas malas feitas? Que estamos ali, mas não estamos, entende? Vivemos como se estivéssemos em iminente partida;
Ficamos num estado de provisoriedade, vivendo a vida numa espécie de modo “pause”, com forte expectativa e ansiedade de voltar a viver o que já fora, o que vivera.
Aí, isso agrava ainda mais o processo de adaptação, funcionando como uma âncora saudosa, que não nos deixar levantar velas e singrar para o desconhecido.
Ficamos amarrados às lembranças, valores culturais, ao nosso lugar que deixamos lá longe, e vamos revivendo isso diariamente, numa mórbida fixação que só nos fará sofrer.
Tem que desarrumar as malas emocionais. Desfazê-las dizendo: “eu vim para ficar, aqui agora é meu lugar.”
Três meses se passaram e ela ainda lembrava. Não temos ideia do impacto de nossa presença na vida dos outros. Para mim, foram só mais uns “conselhos”.
Para ela, fizeram a diferença, a ponto dela com tanta humildade e mansidão, revelar-me que está “tirando peça à peça da mala”, e se sentindo melhor, do ponto de vista emocional.
Deixei-lhe no ponto do ônibus, e tive vontade de beijar-lhe a testa, como faria com meus filhos.
Segui destino com o coração transbordante, surpreso e cheio de felicidade de ter podido ajudá-la.
Na Ânimo, recebo minha paciente nova. Pergunto-lhe como me descobriu, ela me diz que sua amiga já teve aula comigo, e que foi quem me indicou.
Uauu!!!
Mais uma revelação do que vamos deixando por aí, no coração dos outros.
À noite a aula transcorre num clima maravilhoso. Eles estão excitados e conduzem uma negociação entre um supermercado, um posto de gasolina e um hospital.
No retorno do intervalo, uma aluna se aproxima e me diz: “Professor, no dia em que você postou aquela crônica, aquela sobre a aula da sexta, eu estava tão triste... Tinha perdido um parente próximo. Mas, ao ler teu texto fiquei me sentindo melhor. Eu não poderia deixar de lhe dizer isso.”
Pessoal, não conto essas coisas para vaidade pessoal, ou para despertar invejas de todos os tipos.
Que seja tudo sempre para honra e glória de Jesus, é como penso.
O objetivo é que eu e você compreendamos o papel que temos nas vidas das pessoas com nossas palavras, gestos, comportamentos e ações.
Podemos ser sal, fermento, luz, bênção para aqueles que cruzam conosco pelo caminho.
Uma simples carona, de três meses atrás, gerou na jovem um momento rico, que ela dela e do que foi dito ainda se lembrava.
E por aí vai...
As pessoas podem deixar em nós marcos, ou marcas. Marcos de pontos de celebração. Marcos de orientação. Marcos de cuidado. Marcos de bondade. Marcos de solidariedade. Marcos de amorosidade.
Marcas de raiva. Marcas de egoísmo Marcas de inveja. Marcas de negatividade. Marcas de mágoas ressentidas. Marcas de opressão.
Nós também podemos deixar nas pessoas marcos, ou marcas.
Que sejam marcos.
A vida pede mais leveza. Os ares estão pesados. Não perca as oportunidades de exercitar os “deixamentos de marcos”.
Não perca a oportunidade de ser bênção.
De doar o tempo de um abraço, de doar o tempo de uma escuta, de doar um retorno de um email, de doar um post, de ser grande!
Atualmente, diante de tanta agressividade que circula, ser revolucionário é ser o portador de uma cultura de paz.
As pessoas estão cada vez mais sozinhas, sofridas e sem sentido na vida.
Precisamos continuar acreditando nos valores do Ser. E agindo tal qual pregamos.
Tenho uma boa notícia.
Você e eu não precisará mudar em nada sua agenda, ou gastar dinheiro, ou disponibilidade, para ser apoio, ser luz e fermento para o outro. Ser marco.
Você pode fazer isso nas suas interações cotidianas, transbordando e publicando amor em tudo que faz, e para com todos que se relaciona.
Não precisa entrar num monastério, numa ONG, ser padre ou pastor, para ser bom, manso, justo e misericordioso.
Isso pode se fazer na vida comum, no dia a dia.
 Isso se faz apenas com nosso acontecer no mundo. E que ele seja um acontecer bênção, para todos com os quais nós viermos a cruzar, pelas estradas da vida.
Não é hora de esmorecer tua liderança, tua chama.
Não é hora de botar para dormir teus valores mais nobres.
Talvez, nunca a Humanidade tenha precisado mais deles como agora.
Não podemos nos deixar embrutecer.
Não podemos nos deixar murchar o amor que já tivemos pela vida, pelo outro e por nós mesmos.
Não podemos, não devemos...
Tem muita energia ruim circulando, temos que ter cuidado para que ela não degrade nossas maiores fontes de capital psicológico, expressas em três frases:
- Amanhã será melhor.
- Isso também passa.
 - Terei coragem, lutarei, não me deixarei prostrar.
Um beijo no coração e na alma.

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