Sintomas de Sentimentalidades (Por Ricardo de Faria Barros)


Em alguma roça de meu Brasil, Dona Aparecida cuida de suas plantinhas.
Perfiladas em jarros, dos mais diferentes tipos e formatos, ela vai conversando com cada uma delas, acarinhando suas folhas e flores, e amanhecendo o dia junto a elas.
Na cozinha, a garrafa de café já descansa. Já é tarde para os Homens da Terra, são quase 8 da manhã.
A vida no campo começa cedo. Ali, Dona Aparecida e Sr. Dário, do alto de seus setenta e pouco, cuidam de suas vacas leiteiras, galinhas, porcos e frutas de um quintal, a La Sítio do Picapau Amarelo.
Sr. Dário já está no estábulo, ordenhando as vacas. Em silêncio, vai tirando os “quilos” de leite como chamam. Sem movimentos bruscos, quase com uma delicadeza de quem rege uma orquestra de ruminantes.
Qualquer movimento mais atabalhoado, ou barulho, estressa as vacas e diminui a generosidade da oferta do líquido precioso.
O carro do leite passará mais tarde, e a ordenha precisa ser feita com precisão cirúrgica, duas vezes por dia, quer ele esteja se sentindo bem, quer não. Que chova, quer faça sol, quer queira, quer não queria.
Se assim não for feito as mamas adoecerão, e o prejuízo será tremendo.
Findo o primeiro ciclo de ordenha, ele se achega na varanda. A conversa gira em torno das rações mais apropriadas. Luizinho, vizinho de lado, e o meu amigo, vai perguntando tudo sobre a lida de gado leiteiro.
Qual melhor ração para se misturar com a silagem? Polpa cítrica, na proporção e 4 quilos para 1, ou Cevada? Ambas dão energia, proteína...
Escuto tudo como se tivesse numa palestra em Harvard. Sr. Dário vai explicando, e me diz que as melhores leiteiras dele, em 20 anos de lida, não foram compradas em leilões. Foram “feitas” por ele mesmo, no “olho”, à medida em que iam se destacando em produtividade, seu manejo ia selecionando-as.
“Vaca de leilão não presta, boas mesmo são as que vamos formando aos poucos...”
Ele continua a aula, agora como salvar um filhote de vaca, na hora do parto. Como não perder mãe e filho, por uma dificuldade na hora de nascer. Fala que se tivesse chegado logo, na vaca do Luizinho, ele teria salvo a ambos. Mas, quando foi chamado eles já tinham sofrido muito e não mais se recuperaram.
Fala aquilo com uma voz compungida, quase como quem faz uma prece.
Muda de assunto e empresta um medicamento ao Luiz, um que estava em falta. ”Para usar após secar o período da lactação”.
O povo da roça ainda troca entre si recursos, conhecimentos, generosidades e solidariedades, não ficou bruto como os da cidade.
Agora, ele explica sobre as melhores cruzas, sobre coisas simples sobre o fato das galinhas estarem parando de por ovos, talvez de cobras, ao zanzarem pelos campos.
A cobra que matou umas éguas e uma vaca, a Baleia, ainda é citada com reverência. Todos agora andam olhando para o chão.
Mas, na minha teoria, quando avistarmos uma cobra ela já nos viu, e faz tempo. Rsrs
Dona Aparecida passa “café novo”, e nos serve feliz. E fica toda orgulhosa dos elogios ás suas plantinhas, horta e fruteiras.
Pergunto sobre a história deles.
Dona Aparecida se aproxima dele, do Sr. Dário, como quem querendo ouvir com interesse a a história da saga deles, talvez pela enésima vez, mas com uma expressão de quem a escuta pela primeira vez que escuta, tal qual a minha.
Sr. Dário foi servente de construção, foi capataz de fazenda, e aos 40 trabalhava numa sorveteria de Uberlândia. O dono da sorveteria queria comprar uma roça, mas não tinha quem cuidasse dela. E ouvira falar que Sr. Dário já fora vaqueiro, na juventude.
Aí, ele disse-lhe que se ele fosse cuidar da roça ele compraria uma.
E assim e fez. Então Sr. Dário foi juntando as economias, e alugando os pastos vizinhos, criando também umas vaquinhas. Tirando coisa pouca, uns 20 quilos por dia, cujo lucro mal dava para pagar uma carteira de cigarro por dia.
Acordava pela 3 da manhã, seguia sem uma lanterna, tropeçando em cupinzeiros, tirava o leite das suas vaquinhas, e voltava para a lida na fazenda da qual ele era capataz.
O seu filho, o Ivan, tomou gosto pela coisa e também começou a alugar uns pastos, para botar vaca leiteira neles. Um dia, eles juntaram as forças e compraram 15 alqueires de uma terra boa, mas desconhecida, a vinte quilômetros de Uberlândia. Ela ficava na curva da estradinha de terra batida, tinha um resto de pasto muito bom, e deram-na o nome de Fazenda das Palmas. Ali, há vinte nos, reconstroem suas vidas peregrinas.
Voltamos com o coração elevado para a Estância Bela Vista, a propriedade do Luizinho que me hospedava.
No caminho, um pé de Araticum dá o ar da sua graça, mas parecendo um pé de graviola. Uma Seriemas, correm na estradinha, à nossa frente, emitindo um canto esganiçado.
No sítio do Luizinho, dona Etelvina controle seu cigarro de palha. Com uma técnica que poucos ainda sabem fazer. Vai molhando nos lábios o papel, e moldando seu cigarro, com o fumo de corda, que logo será pitado.
Uma paz toma conta do local.
Nos achegamos no capataz, o Cícero, que mostra todo formoso como está ficando bacana o azulejamento da nova área de ordenha.
Cícero é um “marido de aluguel” da roça. Mestre de obras, vaqueiro, agricultor, veterinário, de tudo ele manja e faz.
Foi ele quem construiu a casa de Luizinho, onde me hospedo, com uma habilidade de fazer inveja a mais estilosa das construtoras.
Ele nota minha curiosidade, pelo tema do campo e construção civil, e me mostra a obra que está fazendo, para melhorar o manejo com as vacas leiteiras.
Trata-se de uma espécie de buraco, daqueles que vemos quando vamos botar o óleo no carro, e que servirá para ele ficar lá embaixo, tendo melhor posição para tocar nos peitos das vacas. Rsrs
Um buraco erótico, todo revestido de cerâmica branquinha, com duchas para limpeza e com uns negócios que bota para sugar o leite, tipo umas ventosas. Umas bocas eletrônicas.
Ele diz que caprichou na parede por onde elas vão entrar, para tirar toda a irregularidade no encontro de duas delas. “Não deixei a quina, entre as duas cerâmicas que se encontravam, para não ferir o dorso dos animais”.
Uauuu!!!
Como seria bom se em nossas relações com o bicho Homem, não deixássemos quinas para que eles não se ferissem no trato para conosco.
Ao passarem no corredor de nossas vidas.
Como seria!
O dia já é tarde, e pelas 10h30min e seguimos para “bater o campo”.
O cheiro da relva ainda orvalhada invade meu ser, acalma o mais agitado dos corações.
Um céu azul descortina-se sobre nós, e qual rede de circo nos cobre como quem protege um berço de bebê.
Num dos pequenos açudes, não resisto, vou logo tirando a roupa para um mergulho.
Luizinho desespera-se, quase me segura para impedir. Ele me diz que dias atrás viu um movimento de superfície, uma ondulação, e que pode ser uma sucuri.
Revejo minha valentia, acho que não é dia para brincar de Tarzan. Visto a camisa e me despeço da aventura, ficará para depois.
No segundo açude, Luizinho alimenta os tambaquis. Os cachorros entram na água, e vão disputar a ração com os peixes. E ficam tomando banho, como se estivessem no paraíso. Tenho inveja deles, mas temo os tambaquis esfomeados bicarem o que não deve e desisto de nova aventura.
Voltamos para casa, os cachorros nos acompanham.
Antes, contamos as vacas num dos piquetes, o medo de uma cobra ter matado alguma ainda assusta o Luiz.
Notamos que uma delas não formou procissão com as outras, e nos dirigimos para onde ela está. O coração temeroso, será que foi a cobra? Ou será que pariu na madrugada e está perto da cria. Nada disso, era personalidade mesmo, coisa da idade. Ela não quis seguir com as outras, enquanto fazíamos a contagem, e estava com a saúde boa. E não pariu, ainda, ficando para os próximos dias.
Uma cena de indescritível poesia.
Voltamos para casa, e a Rosa faz uma caipirinha para nós. Delícia. A Rosa é a esposa do Luizinho, se tem uma pessoa combina com o nome é ela.
Rosa é uma alma perfumada. De uma espiritualidade e cultura de paz que encantam.
Tem o dom de servir, de ser gente, de ser luz.
Logo é hora de mais uma nova aula agora como fazer queijo.
O professor não é mais o Dário, o Cícero, agora é o Luizinho quem vai ensinar.
Na vitrola, toca uns boleros.
No coração, elevo a alma em preces, agradecendo.
Passo a passo, ele vai fazendo o queijo. Com uma expressão de cientista, ele explica cada tecnologia que emprega, cada macete, cada arte de queijeiro que aprendeu perguntando aos sitiantes vizinhos, e no Dr. Google. Ele faz queijo de coalho. Rosa ajuda, a comunhão ritmada entre eles é digna de qualquer bom filme de amor.
Uma telinha para coar o soro do queijo se perde. Luizinho fica aflito.
Rosa não perde o prumo, com uma calma de Pietá, continua procurando-a, e acha.
Ufa! O queijo está salvo.
O dia passa e não se viu. Não há sinal de celular para relatar aos que amo as coisas que abrem meu coração, que esperançam meus dias.
Rosa faz pizza para a janta. JG ama pizza de calabresa. Rosa sabe fazer as pessoas felizes, e faz o JG feliz com sua pizza predileta.
A sinfonia da noite invade a roça. Um mugido aqui, um sapo que coacha, grilos em processão cantantes, um pássaro que se despede do dia, em pungentes piados, um latido de cachorro, uma brisa Aracati que sopra em nosso ouvido, dizendo-nos: “que bom que existe...”.
Sentados na escada, Rosa e Luizinho contemplam o anoitecer. Que cena preciosa, para um casal que o mundo do trabalho tirou tanto deles esse direito de juntos sentarem-se, sem o estresse de um amanhã.
Aqueles produzidos em mais de 35 anos de jornadas de doze horas dia, no frenético mundo da tecnologia bancária.
Agora o estresse é outro. É saber se o queijo pegou o ponto de coalho. Se é melhor fazer caipirinha de lima ou de limão galego.
Ou o de acordar bem cedo para ver se tem mais ovos no chiqueiro, para anotar o saldo da primeira ordenha, ou bater o campo à procura de bezerros paridos, e depois ir na “enfermaria” verificar se o cachorro da perna atropelada, voltou a andar novamente.
Agora, como o queijo e doce de mamão que trouxe. O queijo feito pelo Luizinho, o doce pela Rosa, quer jeito melhor que começar o mês de maio?
Do que comendo o Romeu e Julieta deles.
Ando com sintomas de sentimentalidades, acho que estou amando. Amando viver!

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