Numa trilha, um manifesto à vida. (Autor Ricardo de Faria Barros)


Não era um sábado qualquer.
Afinal, iríamos sair para conhecer um lugar diferente, para nos reabastecer com a poética da natureza.
Os meninos, Tiago, Priscila e Rodrigo estavam em alegre efervescência.
Quem deu a ideia do passeio foi a Poliana.
Ela tinha ido com seu namorado, o Polion, fazendo por lá uma trilha de jeep.
Mas, segundo ela, qualquer carro passaria pelos caminhos por onde foi.
E que valeria muito a pena.
Nossa ONG estava com o emocional aos farrapos. Tínhamos perdidos vários companheiros naquele mês, vítimas do HIV/Aids.
Precisávamos daquela aventura.
Partimos de Campina Grande-PB, em comboio, e seguimos pela BR 104, no prumo de Caruaru-PE.
Após passarmos pela cidade de Queimadas-PB, e bem próximo ao distrito de Barra de Santana, saímos na pista asfaltada e nos embrenhamos pelo sertão catingueiro.
Eu sorria à tôa. Agora seria com muita emoção!
Eu amo a Caatinga! Leia com dois “As”, por favor. rsrs
Aquelas árvores me falam, e até sinto o aroma das flores de Jurema.
A trilha se esgueirava tortuosa. Aqui e acolá, precisávamos parar para abrir restos de porteiras, que a pobreza do lugar não permitia concertá-las.
Chegamos numa casa, no final da trilha.
Descemos, cumprimentamos os moradores. Pedimos licença para adentrar nas terras deles e ver os Cayons do Rio Paraíba.
Liberamos uns sacos de bolacha para a filharada dos nativos que corria solta, e partimos agora a pé.
Os meus filhos seguiam à frente, como desbravadores.
Poliana estava feliz da vida, havíamos conseguido chegar no local por ela indicado.
À medida em que nos aproximávamos do abismo, formado pelos paredões rochosos, um silêncio respeitoso ia tomando conta de todos.
Descobrimos uma trilha que descia pelo precipício, daquelas bem íngremes, de fortes emoções, e fomos lentamente descendo por ela.
Ansiosos para nos refrescarmos no filete de água que ainda escorria do Rio Paraíba, a uns 300 metros abaixo de nós.
A descida foi boa. Mas, alguns de nós ficaram pensativos... “e a subida?”
O local era estonteante. Daqueles de cinema. Com grutas formadas pela erosão da água sobre as rochas, com lajedos em forma de piscinas, com o rio mansinho e convidativo nos chamando ao seu regaço.
Descobrimos que estávamos nas ruínas da represa de Curimatã, uma obra iniciada pelo exército na década nos anos 70 e nunca terminada, não sabemos porquê.
Par aonde olhávamos era beleza pra todo lado que saltava á nossa frente.
Flores diferentes, cactos ousados, pássaros que ali vinham para beber.
E um uivo do vento que passava sobre o cayon emoldurava tudo com uma trilha musical que falava-nos de eternidade.
O som do Eterno que habita em nós reverberou, em cada coração ali presente, e agrademos aquele momento mágico, com tanta comunhão entre nós e a mãe Terra.
As noivas ainda não descobriram aquele local, mas que ali daria um casamento lindo daria!
Desde então adotei aquele lugar como meu, meu infinito particular.
Tem uns 20 anos que lá não vou.
Mas, já coloquei na pauta. Não posso partir dessa para a melhor sem antes ter voltado em Curimatã.
É impressionante a força da água sobre as rochas. Que mesmo correndo em filetes minguados, ainda assim, conseguem esculpir nelas sua presença.
Quem esculpiu em mim e em você a presença dele(a)?
Quem foi essa água que nos moldou, que amansou nossas arestas, que nos tornou mais redondos, menos pontiagudos?
Menos lanças agressivas, menos quinas que machucam pernas?
Quem foi? Quem é?
Volto-me para o rio e quase escuto o diálogo das rochas com as águas. Ora uma cede, ora a outra, e dessa comunhão nasce a esperança de que elas vão atravessar as maiores dificuldades.
Às vezes, Via um filetinho rompendo a barreira de uma rocha, e por ali escorrendo a vida.
E ficava impressionado com a força daquele resistir.
Encontramos lugar para estender as tolhas e pikniquear.
Era uma espécie de gruta, que nos fazia sentir como os Homens das Cavernas.
Dali, naquele ninho, nos confortamos mutuamente. Um ou outro chorou, lembrando os falecidos que naquele local não puderam chegar.
Mas, foi choro breve.
A hora era de se alegrar, e em profunda interação com a vida, recuperar a esperança.
Pelas 16hrs, despedimo-nos do local, preparando-nos para a subida.
Agora sim, agora é que seria o teste final.
Um a um íamos nos ajudando. Não tínhamos pressa.
Só avançávamos mais um metro, quando todos estavam em segurança.
Metro a metro, fomos subindo, não temendo mais o amanhã.
Nossos olhos viram a paz.
Chegando no topo, olhamos para aquele oceano de imensidão azul, num contraste de céu de fim de tarde no Nordeste, com o azul da águas refletidos nas rochas, qual espelho.
Aquele Oceano Azul nos restaurou a força em nós mesmos, e no valor do outro a nos segurar pelas mãos.
Sim, tenho e tive muitas águas de vida que moldam o melhor de mim em meu ser.
Que não se cansam de lapidar minha pedra bruta.
Que esculpem minhas imperfeições, que aplainam meus desatinos, que me orientam e estimulam.
Abençoadas águas. Misteriosas águas.
Voltamos para casa cantando o Ói-Êpo, nossa canção da resistência.
Abraçados, despedi-me de meus afilhados: Maio, Reginaldo, Poli, Lana, Maria, Moisés, Fabrício, Paizinha, Nalva e Josi.
Entrei em casa, não me sentia exausto, embora estivesse.
Sentia-me como quem tocara nas vestes de Deus. Como quem se aninhara nos travesseiros dos anjinhos.
 Olhei para meus filhos e senti que eles também entenderam algo precioso para a vida.
A vida acontece é no caminho dos pés, enquanto eles se dirigem para as águas.
A vida se renova no subir de pedras íngremes, quando passamos a dar valor àquela mão que nos guia, àquela mão que cuida de nós, àquela mão que nos sustenta e apoia nossa subida.
A vida se perpetua, em cada traço de nós que com delicadeza deixamos esculpidos no outro, ou que com singela amorosidade, deixamos que ele talhe em nosso coração.

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