A Gestão do Intangível


Um dos textos mais emblemáticos da Bíblia está no antigo testamento, no livro de Samuel, Cap. 8. Para entenderem o contexto, aquele povo organizava-se em tribos nômades, com uma estrutura sócio-política-econômica e cultural de matriz coletivista. Ali, dividia-se tudo: celebrações, preocupações sociais, investimentos, bens, criações e colheitas: de modo que nenhum deles tivesse que passar por necessidades, ou lhe faltasse algum tipo de assistência.
As tribos tinham suas questões administrativas geridas por um conselho presidido por um juiz, legitimado pelo povo. Samuel foi o último juiz daquele período.
Aquela estrutura de produção pode ser considerada uma das primeiras práticas socialista da humanidade. Milênios depois, imitada em Canudos, na Bahia, com um triste fim: a chacina de Antônio Conselheiro e seu povo; que desafiaram a ordem reinante de um Estado onipotente.
Voltemos a Samuel. Acontece que os vizinhos das tribos de Israel organizavam-se em monarquias totalitárias, com pouca ou nenhuma participação popular nas decisões, em forma de conselhos. E eram temidos.
O diálogo do povo com o juiz Samuel é digno de um roteiro de cinema, veja: Então todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel. Disseram-lhe:
“Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações.”
Estas palavras pareceram mal aos olhos de Samuel, quando disseram: “Constitui-nos, pois, agora um rei”. E Samuel orou ao Senhor. E falou Samuel todas as palavras do Senhor ao povo, que lhe pedia um rei. E disse: Este será o costume do rei que houver de reinar sobre vós:
“Ele tomará os vossos filhos, e os empregará nos seus carros, e como seus cavaleiros, para que corram adiante dos seus carros. E os porá por chefes de mil, e de cinquenta; e para que lavrem a sua lavoura, e façam a sua sega, e fabriquem as suas armas de guerra e os apetrechos de seus carros. E tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. E tomará o melhor das vossas terras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais, e os dará aos seus servos. E as vossas sementes, e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais, e aos seus servos. Também os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores moços, e os vossos jumentos tomará, e os empregará no seu trabalho. Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe servireis de servos. Então naquele dia clamareis por causa do vosso rei, que vós houverdes escolhido; mas o Senhor não vos ouvirá naquele dia.”
Mais de 3.000 anos depois, como essa mensagem sobre querer um Rei é atual.
Na falsa segurança de que é bom que alguém “mande” na gente, cobre da gente, controle a gente, ficamos excessivamente dependentes a todo tipo de autoridade. Carentes de alguém que exerça sobre nós qualquer tipo de poder.
E, o pior, quem já teve um “Rei” desse tipo logo viu frustradas suas expectativas.
Rei em forma de marido, pai, chefe, político, ou entidades endeusadas de qualquer origem, nunca nos fará bem – do ponto de vista da autonomia, liberdade e protagonismo de nossas vidas.
GRs não possuem líderes em suas equipes. Possuem subordinados.
Não incentivam a delegação de tarefas, a autonomia, ou o compartilhamento de decisões.
GRs têm sempre a única e a melhor saída. Têm todas as respostas. Centralizam tudo e estufam o peito, orgulhosos, de seu rebanho de ovelhas.
Transmitem uma falsa segurança: “ele nos protege, a seu modo, mas nos protege”.
Exercem uma liderança esquizofrênica, bipolar, e às vezes, assumem uma postura paternal que atrofia pessoas, e as tornam escravas de um estilo danoso.
No pacote acima, sonegam-se espaços de iniciativa, de dinamismo, de resolução criativa de problemas, de administração de conflitos, de entrega de resultados, de inovação, dificultando a formação de novas lideranças.
Afinal, ninguém se sente gestor de seu próprio processo de trabalho, de sua carteira de serviços prestados. De seu sentido do trabalho. Tudo é delegado, ou terceirizado para essa espécie de Deus em forma de gente.
O pior é que uns GR de fato se sentem assim. Outros têm certeza.
GRs são sabotadores. Sabotadores de motivos mobilizadores, uma vez que seus trabalhadores não se concebem - eles próprios engajados na construção de seu projeto de vida profissional. Vão se acostumando a sentirem-se tarefeiros – operários de um fazer sempre dado e prescrito. Embotam a alma, embotam vidas e sonhos.
Não pensam, criam, ousam ou animam-se a superar situações limites.
Vão ficando tolhidos.
Tal qual aquela criancinha que no primeiro ano fundamental na aula de artes. Ela queria pintar com os lápis de cores. Mas a “tia” definiu que só poderia ser com a cor vermelha.
No segundo ano, na atividade de argila, ela queria fazer um bichinho. A tia definiu que deveria ser um pequeno pires.
No terceiro ano, ela foi chamada a expressar-se com palavras, para o uso dos verbos com a letra C. Ela pensou em fazer uma cartinha com as palavras: Cozinhar; Comer e Comemorar.
A tia proibiu. Disse-lhe que deveriam ser apenas palavras retiradas de um capítulo de um livro bolorento, no qual não havia os verbos acima, aqueles do alimento do corpo e do ser.
Na quarta série mudou de colégio. A professora começou a aula perguntando aos alunos: Como foi seu dia de ontem? Na vez dela falar emudeceu. Questionada pelo silêncio: ela disse à professora: “Mas Tia, sobre o que é mesmo que você fale de meu dia de ontem?”
Quantos adultos ficaram assim.
Tiveram pais controladores; professores reprodutores de conhecimento e gestores autoritários.
Não vou violentar minhas crenças.
Acredito que funcionários não precisam ser tocados: quem toca algo são boiadeiros. Suas boiadas.
Acredito que funcionários não precisam ser controlados. Quem controla algo é operador de torre aeroportuária.
Acredito que funcionários não precisam sempre receber algo, em troca de algo entregue. Quem trabalha com essa expectativa são os garçons 10%.
Nas vezes em que mais cresci, na carreira técnica, foi quando tive gerentes que me incentivaram a ser líder.
A pensar e agir como se líder eu fosse. Mesmo que estivesse autenticando papeis num caixa. Esse é meu conceito de um bom gerente: desenvolver a liderança em si mesmo, e nos seus liderados. Deixá-los voar e compartilhar com eles a gestão.
Afinal, liderança não é uma posição hierárquica, ou uma função. Liderança é uma competência que deve ser sempre desenvolvida, no seu conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes.
Só me pergunto se alguns trabalhadores, do atual mercado de trabalho, possuem nível de maturidade para terem gestores-líderes? Sem “pularem o corguinho”.
Pergunto-me também, se os gestores-líderes terão motivação suficiente para atualizarem seu portfólio de competências, e lidarem melhor com diferentes expectativas e culturas geracionais, sem abrirem mão do crescimento que até então tiveram, ao exercerem a gestão de forma mais humana, participativa e mobilizadora de suas equipes?
São dilemas da gestão de pessoas na contemporaneidade: meus, teus e nossos.
Por isso, renovo anualmente meus propósitos de gestão, vacinando-me contra estilos GRs e correndo atrás de atualizar-me periodicamente, frente aos novos desafios de ser gestor de gente, já que a canção me ensinou a não seguir o caminho tradicional: “Então não pude seguir, valente em lugar tenente, de dono de gado e gente, porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente."
Carta de Princípios de Gestão, By Ricardim
1) Pautar a conduta profissional pela justiça, meritocracia, comprometimento e alinhamento às diretrizes da gestão, engajando a equipe na busca dos objetivos definidos;
2) Exercer com efetividade a gestão de desempenho por competências, e a consequente prática do feedback;
3) Evitar a centralização gerencial e o controle de coisa miúda, favorecendo a autonomia e a formação de lideranças;
4) Investir tempo na formação da equipe, inclusive pelo exemplo, focando no aprimoramento e orientação profissional;
5) Acolher e/ou encaminhar, no que couber, as necessidades e expectativas individuais, ou coletivas, contribuindo com a melhoria do clima organizacional;
6) Transmitir coerência ética entre o que prega, e como age, portando-se com paixão e entusiasmo na condução da equipe;
7) Manter a equipe focada em resultados e entregas prioritárias, com base nas competências iniciativa, autonomia, resiliência, agilidade, inovação e eficiência;
8) Corrigir desvios que possam comprometer o ambiente de trabalho e a produtividade;
9) Celebrar periodicamente a caminhada, favorecendo a constituição do tecido grupal e senso de pertencimento, demonstrando consideração e reconhecimento pelo engajamento e comprometimento dos membros da equipe;
10) Comunicar-se com objetividade e constância, privilegiando o compartilhamento da estratégia de negócios, e a essência dos valores organizacionais.
Especialmente aos bons gerentes, que me ensinaram pelo exemplo, ao longo de minha vida profissional. Nenhum um pouco GRs, ainda bem.

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