Enquanto reclamo aqui dentro, a vida acontece lá fora.


Era uma quinta corrida. Evento durante o dia todo, e à noite viajaria até Foz do Iguaçu, onde ministraria uma palestra na Itaipu. Ainda precisaria passar pelo colégio do JG e apoiar a apresentação do dia dos pais, deixando minha câmera na secretaria. Teria que me virar num Ninja-Tempo para me desdobrar em tantos papeis.
Saí de casa conferindo umas três vezes se nada houvera esquecido. Afinal, do trabalho mesmo, seguiria ao aeroporto. Sempre penso que esqueci algo. Tenho TOC de viajantes.
Antes de sair, peguei um livro à tôa, um daqueles que vamos comprando para um dia ler, e fica no final da ordem de prioridades, embora selecionado para tal.
Ninguém compra nada ao esmo, existe sempre uma intencionalidade que orienta o desejo.
Botei o livro na pasta, que já arfava de tanta coisa dentro dela.
Durante o dia tudo correu bem.
À noite na sala de embarque tive uns raros momentos de descanso, saborosos instantes de recordação, pois tudo correra tudo bem.
Ouvi a chamada para meu voo, naquele sistema que as Cias Aéreas fazem para acelerar o embarque seguindo a ordem abaixo:
a. Prioridades e cartões dos bacanas.
b. Filas de 15-30.
c. Filas de 1-15.
Minha poltrona era a 6ª. Percebi que a fila B era enorme, aliás todos estavam nela.
Entrei sozinho na minha fila e aguardei.
Passados uns 5 minutos a fila ao lado só crescia e a minha só eu. Pensei, “só vou eu na frente do vôo”.
Aos poucos chegaram umas 4 pessoas na minha fila. Fiquei menos desconfortável, eu estava me sentindo um estranho, objeto de olhares de estranhamento: “o que aquele cara faz ali? ”
Depois de uns 10 minutos, não me contive e reclamei com o atendente. Ele, com voz treinada para situações da espécie, disse-me que chamaria nossa fila em breve.
Passarão mais 5 minutos. E a fila B só aumentava.
Quando ele nos chamou, disse-lhe que o serviço de sua empresa estava caótico e que aquele negócio de 3 filas só atrapalhava.
Ele olhou-me e com cara de quem é treinado para clientes irritados, disse-me languidamente: “Tentamos, mas o povo não respeita”.
Entrando na aeronave ainda saquei outra reclamação para a tripulação sobre o tratamento que os 5 abnegados da fila C tiveram.
Tudo correu bem em foz. Mas percebi que não conseguia fazer meu check-in de volta. Reclamei sobre a situação com umas três pessoas, até durante a palestra falei que talvez por ter um homônimo na Paraná famoso, o Dep. Ricardo Barros, ele tivesse feito meu check-in. Assim, precisaria sair às pressas ao término dela para resolver a situação, temendo não embarcar.
Tudo besteira. A passagem estava lá, certinha, não estava no sistema por questões de segurança. Havia duas voltas marcadas para mim, em horários diferentes, de uma passagem antiga que eu tinha comprado de suas pernas foi cancelado o horário, situação para a qual pedi reembolso.
No taxi, da Itaipu até o Aeroporto, ainda reclamei sobre isso com o taxista. “Corra que estou sem bilhete. ”
Situação resolvida. Finalmente relaxo. Dirijo-me à lanchonete, compro uma Heineken, um quibe, pago uma fortuna, e sento-me como rei. Um sentimento prazeroso de realização pela missão cumprida e a boa aceitação da palestra me invade. Bem. Em duas horas embarcarei. Se eu não fosse tão ansioso teria dado tempo para almoçar no evento. Aliás, se eu tivesse simplesmente ligado para a TAM teria visto que tudo estava ok.
Tomo aquele gole degustando cada ml. Olho o painel e vejo que o vôo está confirmado.
Satisfação, paz, cerveja gelada, quibe delicioso para quem não almoçou saindo às pressas, vôo no horário e voltar para o lar. Precisa-se de mais para termos um paraíso por aqui?
Lembro-me do livro e o busco entre mil coisas da bolsa obesa. O livro é de Will Bowen, chama-se “Pare de reclamar e concentre-se nas coisas boas”.
Logo de cara já em já me apaixonei pelo conteúdo. Esqueci até de comprar outra Heineken.
É o que se chama de amor à primeira orelha, no caso de um livro.
Você deve e curiosidade para saber o que tanto me chamou a atenção, vou te ajudar transcrevendo-a:
“Em 2006, o pastor Will Bowen desenvolveu o programa Sem Reclamações com base num princípio simples: coisas boas acontecerão se você deixar de lado suas queixas e lamentações e parar de falar mal das pessoas. Bowen distribuiu pulseiras aos fiéis de sua igreja e lhes propôs um desafio. Passarem 21 dias sem reclamar de nada ou ninguém. E cada vez que se pegassem falando ou escrevendo algo desse teor precisarão trocar a pulseira de posição – para o outro braço, e recomeçar a contagem. O livro foi escrito para mostrar que a vida pode ser muito melhor se mudarmos de atitude e pararmos de enxergar apenas o que há de errado. A reclamação é um hábito destrutivo que nos afasta da alegria e da auto realização. Estamos tão acostumados a falar mal das pessoas e a reclamar do mundo que não percebemos o efeito que isso tem em nossas vidas. Quando nos conscientizamos do que falamos e escrevemos – nossos pensamentos proferidos e palavras escritas, podemos afastar a negatividade da mente e adotar uma postura positiva que abre caminho para a felicidade e bem-estar”.
Devorei aquele livro durante o tempo de embarque e vôo até Curitiba, onde faria conexão. Durante o trajeto, de uma hora, já coloquei uma pulseira imaginária no meu braço e me propus a iniciar ali mesmo a contagem dos 21 dias.
O reverendo levou dois meses, para conseguir, pensei, mas levarei menos. É mole.
Desembarquei em Curitiba e errei o lugar da conexão indo no sentido da GOL. Voltando por onde vim achei o local e me contive de disparar para a atendente que faltava sinalização, afinal estava com minha pulseira no braço. Só pensei. Pensar pode.
Aguardo folheando o livro quando escuto o chamado. Entro novamente na fileira de 1-15. Dessa vez sou o segundo, na minha frente um senhorzinho octogenário. O atendente percebe o convida para a fila dos prioritários. Pronto, agora eu era o número um novamente da fila C.
Aos poucos vão chegando mais pessoas, agora somos uns 10. A fila ao lado começa a embarcar, são as das fileiras 15 em diante.
Enorme fila. A nossa permanece com uns 10.
Lá no final da fila, após uns longos 10 minutos e nada de terminar a fila B de encher e andar, um dos 10 passageiros se exaspera e brada em voz alta que deve estar acontecendo algo errado, pois a fila C não aumenta e a B só cresce. E que deve ter alguém bancando o sabido na fila ao lado.
Um jovem varão, com sua fogosa namorada, da fila B se dói com o comentário e olhando para o senhor o desafia a tirá-lo da fila que andava.
Pronto, confusão armada.
Começa uma chuva de imprecações. O varão, cheio de hormônios, é incentivado pela sua namorada a mostrar-se “o cara”. Não sabiam que é daí que nascem as desgraças.
O restante da fila C, a dos 10, começa a me pressionar para falar com o despachante da TAM, afinal sou o primeiro.
Então, solto uma reclamação em voz alta. “Senhor da TAM, em Brasília aconteceu a mesma coisa, aqui também, não há conferência? ”
Ele diz que está fazendo seu trabalho. E que aguardemos o chamado. A energia de insatisfação aumenta. Agora somos os inimigos da fila B, a que anda e continua a crescer.
Tempos depois, eternos, ele chama nossa fila. Passando por ele, na apresentação da documentação, solto uns verbos, substantivos e adjetivos bem negativos. Eu também queria marcar meu lugar de macho. Afinal, era esse o tom de minha fila.
Digo-lhe até que vou fotografar as fileiras iniciais do avião e mandar para a presidência da TAM. Nessa hora olho para trás e vejo olhares de admiração, virei o líder.
A pulseira imaginária já foi para o vaso, com descarga e tudo.
No corredor de acesso, vamos todos criticando a empresa, nós agora o time da fila C.
Então, formamos um corpo solidário. Não precisa dizer que daí o assunto derivou para outras áreas do “jeitinho Brasileiro”. E tome negatividade. Todos tinham uma história para contar, enquanto os da B ia evoluindo naquele pequeno corredor de aceso, para complicar, dois passageiros entraram no voo errado e atrasou o embarque pois eles estavam voltando.
Vou babando de raiva, esperando minha vez de pisar no solo do avião e ver os corredores vazios, que comprovariam minha tese.
Na porta, uma tripulação risonha, sorrisos de cortesia, confesso.
Vomito sobre eles minha rabugice. Destilo toda a insatisfação. Mas, quando miro no avião decepciono-me.
Havia naqueles primeiros 90 lugares (15 filas x 6 lugares), apenas umas 9 pessoas sentadas. Considerando que poderiam ter sido do público prioritário, ou cartões bandeira vermelha, tarifa Gold, era muito pouco. E, mesmo se não fossem daqueles públicos, estava falado de um erro de 10% apenas.
Procuro um chão para me esconder de envergonhado, mas não tem. Aviões não tem chão.
Reabro o livro e volto a estudar. Estou fraco na técnica.
Descubro que estou na etapa de Incompetência Consciente. “A essa altura de nossa jornada, você começou a perceber suas reclamações. Já se tornou consciente de sua incompetência e repara quando reclama. Você agora está no estágio da incompetência Consciente”
Mudo a pulseira imaginária de braço e recomeço a contagem.
No pagamento do estacionamento em Brasília, quero reclamar que o pessoal está invadindo a fila pela área lateral, mas só penso. Bingo.
Volto para casa e no caminho ligo para esposa. A convido-lhe para comermos algo num local próximo. Ela me diz que chegou de um dia puxado com o JG, fora a apresentação do colégio, e ele ainda está abatido com uma virose que pegou e o desarranjou.
Quis reclamar. Contive-me. Ufa. Pulseira no lugar certo ainda.
Ela me diz que se eu quiser parar para jantar que eu fique à vontade. Digo-lhe que um pão com ovo em casa, com a família, vale qualquer jantar. Ela me diz sorrindo que tem pão e ovos em casa.
Ganho pontos. E sigo o trajeto.
Chegando em casa, abraço a família, recebo a lembrança que o JG preparou no colégio para o dia dos pais.
Estralo ovos e pergunto-lhe pelo pão. Ela me mostra uma espécie de empanado. Digo-lhe que aquilo não é pão para colocar ovo. Ela me diz que na geladeira tem. Abro a geladeira e vejo um saco com aqueles minis pães.
Digo-lhe que aquilo não é pão de homem.
Não presta para sanduiche.
Dou uma risada. Ela não sabe de que. Abraço-lhe e peço-lhes desculpas. Mudo a pulseira novamente de lugar. E, como o melhor mini sanduiche de ovos de minha vida. Recomeçando a contagem em 3,2,1!
Estamos tão impregnados de negatividade que precisaríamos transcrever nossos diálogos para perceber o quanto “entramos na onda” e quando nos percebemos já estamos destilando veneno sobre nós mesmos, a vida ou os outros em forma de críticas, reclamações ou até fofocas.
Usar a pulseira nos dá um sensor objetivo para monitorar-nos e remodelarmos nosso modelo mental. Como aqueles relógios marcadores de quantos quilômetros caminhamos e em que tempo. Lembra?
Você deve estar perguntando-se: como posso viver sem reclamar?
O autor do livro nos ensina a trocar reclamações por perguntas, diálogos, empatia e ajuda cooperativa para que as coisas atinjam o que esperam.
Dizendo o que espera, e não reclamando do que não tem.
Tirando delas a carga de negatividade e inserindo no lugar uma carga de positividade contribuindo para o avanço da situação e a superação de impasses.
Outra técnica que ensina é a de acolher mansamente o que ocorre e sublimar, elevando sua sabedoria a outros aspectos da situação.
Sem fazer da mesma uma tempestade, avaliando-a sobre o prisma se de fato compensa tanta exasperação por coisas triviais que acontecem no relacionamento diário.
No meu caso poderia ter trocado a reclamação do pão por uma pergunta. Não tem do pão maior? E com a resposta negativa, contabilizar as sobras, pois ainda teria um pão para saborear com ovo, mesmo pequeno.
Acolhendo a situação e adaptando-me à realidade, reprogramando minha expectativa de um grande sanduiche, afinal o sanduiche era o de menos àquela hora. O que eu precisaria saborear era a beleza do reencontro em família após voltar de uma viagem.
Outra coisa que o livro fala é do fenômeno que aconteceu comigo na fila da conexão.
Convido-lhe para uma viver comigo experiência em psicologia social. Você está jantando com seis amigos, num restaurante esplêndido e de cozinha perfeita, com uma carta de vinhos de tirar o chapéu.
Seus amigos e amigas têm a mesma faixa etária dos 30 anos.
Seu papel, nesse laboratório, será o de viver um personagem que ama o vinho, tem 50 anos, e gosta de gastronomia e viagens. Será você que iniciará a conversa na mesa de amigos, conduzindo o tema para assuntos do tipo: vinhedos, vinhos, viagens inesquecíveis e pessoas belas, boas e virtuosas que conviveu.
Existem mais dois atores à mesa. O papel deles será, após 60 minutos de prosa boa, bela e virtuosa, inserir um tom de reclamação no mote dos diálogos.
Os outros 3 convidados não possuem papel definido.
Então o encontro começou. Você iniciou com o tema vinhos bons. Degustando o vinho que bebia. Todos entraram na “onda’ do bom, belo e virtuoso. Falavam de videiras centenárias, de vinhos que tomaram, de jantares e viagens inesquecíveis. Uma hora depois, os dois outros personagens, previamente preparados, inserem outro tema na prosa.
Um começa dizendo: “É verdade, que vinho bom, no meu tempo de jovem só tomava tubaína. Era muito pobre e duro. Como foi ruim o que passei...”
O outro personagem emenda: “E o meu? Meus pais trabalhavam 12 horas para sustentar a casa, nunca tive uma festa de aniversário. ”
Os três amigos que não foram previamente treinados, embarcaram no tom da prosa. Cada um relatando suas mazelas de infância e juventude. Os dois personagens treinados iam inserindo novos aspectos de reclamações e críticas à conversa. Um deles começou a falar que o vinho em vidros não apropriados perdia qualidade. Todos passaram a olhar para os prosaicos copos de cristal do Paraguai que bebiam aquele vinho e reclamavam. Outro dos treinados inseriu o tema de que quando se alegra sempre pensa, vai durar pouco, algo de ruim virá. Todos começaram a lembrarem-se de fatos assim, quando após períodos de bonança vinha tempestades, e que tempestades.
Mortes, separações, puxadas de tapetes, pessoas ruins, não sobrava nada naquela mesa.
Até que um deles olhou para o primeiro personagem, treinado para ficar calado após 60 minutos, aquele que iniciou o tema com aspectos bons, belos e virtuosos da vida:
“Você ficou calado por que? “
Percebem? Quando começa o campeonato de lamúrias e sentimentos ruins quem dele não participa é tido como um estranho no grupo. Lembra de minha posição na fila. Quando todos atrás de mim reclamavam e eu ficava tentando manter minha pulseira no lugar e segurando o emocional? Eu passei a ser cobrado pelo grupo a explodir, a reagir.
O autor do livro dessa crônica, fala-nos que somos seres de energia emocional e que nos conectamos a energia predominante para que nos harmonizemos a ela. Quando ela entra em choque com nossos valores, nem sempre conseguimos nos harmonizar, e entramos em conflito, nos calamos, ou fugimos. E quase nunca, inserimos um novo tom na prosa.
Então, uma mesa que estabelece um papo negativo irá conduzir esse tema por minutos a fio, até alguém tentar inserir um tema positivo, mas nem sempre com sucesso, o negativo atrai mais facilmente nossas fantasias de perseguição, medo, frustração, pelo cérebro reptiliano que nos ensinou a sobreviver vendo tudo como possível ameaça nos ensinando os padrões de ataque, fuga ou defesa. Uma família idem. Uma empresa idem. Uma comunidade idem.
Escuto o apito final do treino do JG e dou uma pausa nessa crônica que escrevo ao lado de uma pequena árvore, cheia de frutinhos, que atrai todo tipo de pássaros para sua copa, uma bênção.
Pego o JG e vamos nos dirigindo para casa. Ele me pede para brincar na casa dos amigos.
Reclamo que estive fora e que ele deve vim brincar comigo ao chegar em casa.
E emendo, e depois na casa dos vizinhos você vai brincar com os menininhos e esquece a hora, e eu fico berrando e você não me ouve.
Paro de falar. Troco a pulseira do lugar, dou uma gargalhada, JG não entende nada.
E digo-lhe perdi.
Chegando em casa, a sua mamãe o saúda, e ele solta um “Papai perdeu, vai ter que trocar a pulseira do lugar”.
Minha esposa comenta: “Mais que pulseira?
Ele responde: “A da “reclamação”. Eu, penso silenciosamente: gratuita, besta e por coisa pouca...
Se eu trocasse a reclamação por uma pergunta, uma proposta, um convite, ou simplesmente uma constatação tudo setia mais fácil: “JG, estou com saudades e gostaria de passar um tempo maior contigo hoje, pode ser? ”
Simples, mas difícil e muito utópico nos tempos atuais. Eita, reclamei novamente. Trocando a pulseira e recomeçando. rs

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