Cartas ao JG - Aprenda a fazer "conservas emocionais"


Conseguimos chegar do colégio a tempo de você brincar um pouco lá fora, com luz do sol ainda.
Logo correu para um de seus morros prediletos, o da foto. Você me contou que explora alguns "morros", e tem esconderijos, acho que na casa do vizinho, como foi flagrado dias destes.
Será que irá lembrar dessas boas vivências de criança?
Creio que sim. De alguma forma elas irão ficar guardadas no teu coração, e, nos tempos de gente grande, poderá acessá-las, deliciando-se com aqueles tempos bons, tal qual fazemos ao abrir conservas de doces, vegetais ou carne na lata de banha.
As conservas emocionais serão importante alimento para sua alma. Guarde-as com zelo, cuide delas.
Quantas noites, antes de dormir, eu visito as minhas - aquelas que meu acidente de moto não apagou da memória.
Nos dias de maior aperreio antes de dormir, quando lembro de um monte de coisas pra fazer no dia seguinte, dirijo-me a uma de minhas conservas emocionais predileta.
Era um leito de rio seco, na fazendo de meus avós paternos.
Naquele leito de rio, com areia branquinha e fina, fazíamos nossos túneis, poços e explorávamos a região inóspita da caatinga, subindo rio acima.
Meus primos formavam comigo a comitiva. Éramos os desbravadores do leito do rio seco.
Perto da casa de meu avô, o curso do rio passava por baixo de uma ponte - sobre a qual a linha férrea se aninhava.
Ficar ali esperando o trem era uma delícia. Conseguíamos ouvi-lo vindo, botando o ouvido no trilho e sentindo a vibração, que loucura!
Outra brincadeira era a de jogar pedras nos ninhos de maribondo, que ficavam embaixo da ponte. Quando acertávamos saiamos em disparada, rio acima, que nem bala nem marimbondo nos pegaria.
A brincadeira era fugir dos marimbondos.
Agora, nas insonias mais brabas, ativo uma conserva emocional especial.
Foi quando chegou uma enchente no rio, enquanto brincávamos nele.
Uma cabeça d´agua. Cabeça de água é quando chove muito num trecho mais afastado do rio, e o acúmulo de chuva vai vindo de morro abaixo, enchendo tudo, como uma espécie de onda.
Nunca esquecerei nossa felicidade, correndo paras as margens, para não nos afogarmos, e depois que a onda passou, tomando banho nas beiradas do rio.
Guarde tuas boas lembranças, como conservas emocionais.
Cuide delas, colecione-as, não as despreze.
Elas são muito importante para te ajudar a superar desafios.
Se os pais soubessem como as boas lembranças são importantes, deixariam seus filhos tomarem mais banhos de chuva, melarem as roupas na areia, lambuzarem-se com fruta madura.
Acho que você vai lembrar-se dessa espécie de prancha que usa pra descer seu "morro".
Que bom. Aprenda essa dica, lembranças boas guarde como conservas.
Para as lembranças ruins não faça isso. Nada de guardá-las em conservas.
Para estas, deixe-as ao relento, para que logo apodreçam e sejam processadas pelo ciclo da vida.
Não fique mexendo nelas. Deixe-as num canto do coração, numa espécie de quarto dos despejos.
Com o tempo elas vão secando, murchando, perdendo a força e o fedor.
Logo não mais se lembrará delas. Passou.
Agora, para as boas, revisite-as sempre.
Como eram belas as águas que germinavam o leito sedento daquele velho rio nordestino.
Como essas águas ainda hoje germinam vida em meu ser.
Quando você ler essa carta, não haverá mais teus morros - casas serão construídas no lugar.
Mas, você poderá continuar sendo um homo Sapiens-Demens e brincante.
Só não brinque com as pessoas. Não as manipule, oprima ou explore.
Visite parque de diversões. Roda gigante. Tome muito sorvete. Faça rappel, ande de asa delta, pegue onda, jacaré, goste de jogar uma pelada.
Nos finais de semana, tire os sapatos, bote uma bermuda.
Nunca deixe que os bens materiais ceguem tua felicidade verdadeira, aquela que não pode ser comprada.
Leve-se para passear, tome sol, curta o mar, sinta a vida.
Não entregue sua felicidade a ninguém. Não terceirize sua alegria, seu bem-estar.
Encontre-se em paz consigo mesmo, antes de tudo.
Aprenda a ser feliz sozinho. O que não significa que não deve cultivar amizades e amores.
Mas, não fique deles dependente. Leve-se para brincar. Não fique um adulto sério e rabugento.
Descrente de tudo, negativo, pessimista e chato.
Sorria. Tenha esperança que o amanhã será melhor. Não deixe a criança em você morrer, ela é nossa melhor amiga.
Aquele rio e o fenômeno da cabeça de água não voltarão. Se eu tivesse na barra da saia de minha mãe, na cozinha da vovó, nunca teria visto.
Não fique em nossa barra da saia. Vá ver suas próprias "cabeças de água", depois volte para nos contar e mostrar as fotos.
Mas, aprenda a fazer conservas emocionais das coisas boas que viverá.
Aprenda a guardá-las com cuidado, na dispensa de teu coração, para consumo de tempos em tempos, em rituais gastronômicos afetivos-emocionais de si mesmo.
Verdadeiras celebrações da vida que vale a pena ser vivida.

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